Cármen Lúcia: o Brasil depende cada vez mais das universidades
Convidada do ciclo 'Tempos presentes', ministra do STF refletiu sobre democracia, implicações da autonomia e a crise de desinformação
A atuação da UFMG no enfrentamento à pandemia do novo coronavírus reforçou a premissa de que o conhecimento deve ser construído em benefício da saúde e da vida humana. “Isso não é uma abstração”, enfatizou a ministra do STF Cármen Lúcia Antunes Rocha. “A existência de cada um de nós e a trajetória brasileira dependem, cada vez mais, das liberdades que se materializam na circulação e expressão do conhecimento produzido nas universidades, que é voltado para o benefício do ser humano. Portanto, a autonomia universitária deve ser respeitada como princípio constitucional”, defendeu a magistrada.
Nesta segunda-feira, 28, Cármen Lúcia ministrou a conferência Universidade, democracia e liberdade de expressão em mais uma edição do ciclo Tempos presentes. O evento foi transmitido pelo canal da Coordenadoria de Assuntos Comunitários (CAC) no YouTube, onde está gravado.
Cármen Lúcia lembrou que o sistema universitário foi priorizado, de maneira muito específica, no texto da Constituição Federal (CF/88). Segundo ela, o constituinte, historicamente, foca em aspectos que se encontram mais vulneráveis em uma sociedade. “No caso da Constituição brasileira, o princípio mais evocado é a igualdade. Isso porque nossa principal chaga social, política e econômica é a desigualdade, que tem origem na educação ruim”, disse.
A ministra salientou que a desigualdade se desdobra na discriminação e no elitismo em seu pior sentido, ou seja, na “existência de indivíduos que se acham muito melhores, porque tiveram melhores oportunidades, e não querem mudar esse estado de coisas”. Em seu entendimento, ao longo dos 32 anos desde a promulgação da CF, o Brasil tem avançado – mas em ritmo mais lento do que o almejado. “Melhoramos, mas queríamos hoje ter alcançado um patamar ético muito superior. No que tange à educação, o déficit ainda é enorme. A sociedade brasileira ainda não se convenceu plenamente da centralidade da educação”, ressalvou.
Ao dotar de autonomia as universidades, como lembrou a ministra, a CF assegurou a liberdade de expressão e de informação, de aprender e de ensinar. “O dispositivo prezou pela independência das instituições, protegendo-as da submissão à política. O conhecimento não tem limites e ideologias, não se limita ou se direciona por uma forma preestabelecida de pensar, pois é um pensamento em construção permanente”, refletiu.
Liberdade de expressão
Promulgada após um período de ditadura, a CF/88 teve o compromisso de assegurar as liberdades que haviam sido negadas aos brasileiros. Desde o seu preâmbulo, ela é taxativa em afirmar, segundo Carmen Lúcia, que a Assembleia Constituinte reuniu-se para formar uma sociedade livre, justa e solidária, orientada pelos ideais de fraternidade, solidariedade e justiça social.
“A CF garante todas as formas de expressão intelectual, artística e científica. Mas não permite o uso da expressão como arma de agressão ao outro”, salientou, referindo-se à atual crise de desinformação impulsionada pela disseminação de fake news. “Os autores das inverdades tentam se amparar na liberdade de expressão. Mas a CF não protege esse uso da expressão como arma. Pela palavra, se ofende, se transgride, se mutilam direitos”, sustentou.
Além da política institucional
A ministra do STF destacou sua visão da democracia como algo além que transcende um sistema de governo. Para ela, a democracia é uma forma de viver com o outro, fundamentada em valores que possibilitam que cada um possa cumprir sua vocação humana. “Quanto mais aberta for a concepção do que é justo, e se puder viver de acordo com esses valores, mais democrática será a convivência em sociedade. Portanto, quando falamos de democracia, não estamos falando somente de Estado”, disse.
Como reforçou Carmen Lúcia, a democracia é necessária para que o ser humano desfrute, permanentemente, “do exercício da sua libertação, da busca pela dignidade e pela melhoria das condições de vida”. “Estabeleceu-se no Brasil e em outras democracias que a convivência com o outro deve ampliar os espaços de liberdade, para que o ser humano tenha uma experiência vital digna. Numa antidemocracia, não há respeito às opções humanas do outro. Portanto, não se respeita a dignidade, que é construída pela experiência de liberdades”, definiu.
Cármen Lúcia Antunes Rocha fez mestrado na Faculdade de Direito da UFMG no início dos anos 80. É ministra do STF desde 2006. Ela foi a segunda mulher a integrar a corte e a primeira a presidi-la, de 2016 a 2018.
A abertura da conferência foi feita pela reitora Sandra Regina Goulart Almeida e pelo vice-reitor Alessandro Fernandes Moreira. Após a exposição, a ministra respondeu a perguntas formuladas por professores da UFMG: Hermes Guerrero, diretor da Faculdade de Direito, Monica Sette Lopes, vice-diretora, Fernando Jayme, que dirigiu a Unidade de 2014 a 2018, Aziz Tuffi Saliba, vice-diretor na mesma gestão e atual diretor de Relações Internacionais da UFMG, e Felipe Martins Pinto, presidente do Instituto dos Advogados do Brasil.