“É preciso pensar na historicidade das práticas e produtos culturais"
Professora do departamento de história da UFMG Miriam Hermeto discute a decisão de Chico Buarque em aposentar a composição 'Com Açúcar, com afeto', devido o viés machista da letra
Entrevistado pelo documentário O Canto Livre de Nara Leão , lançado recentemente nas plataformas digitais, o cantor e compositor Chico Buarque revelou que não pretende mais cantar uma de suas composições, a faixa Com Açúcar, Com Afeto , pela temática machista da letra. A canção foi originalmente encomendada e interpretada por Nara Leão em 1967 e narra a uma mulher submissa e infeliz, que faz de tudo para agradar o marido em fiel. Na letra, há declarações ao “ Fiz seu doce predileto, Pra você parar em casa ” e “ E lhe ver assim cansado, Maltrapilho e maltratado, Como vou me aborrecer? Logo esquenta vour seu prato ”...
Assim como outras composições antigas de Chico, a canção é crítica por movimentos feministas por normalizar a submissão da figura da mulher. Em entrevista ao documentário, Chico Buarque afirma “sempre dar razão às feministas, mas compreende que, naquela época, não passa pela cabeça que isso era uma pressão”.
Para debater a decisão de Chico Buarque e a letra de 'Com Açúcar, Com Afeto', nesta sexta-feira, 4, o programa Conexões recebeu a professora Miriam Hermeto, do Programa de Pós-Graduação em História na UFMG, especialista em História e Culturas Políticas, coordenadora do Núcleo de História Oral do Laboratório de História do Tempo Presente e co-coordenadora do Travessia - o Grupo de Estudos sobre Ensino de História. Para docente, numa sociedade em que a alfabetização é ainda muito precária, a música popular brasileira é um produto cultural com uma força ainda maior no cotidiano. Dessa forma, as canções carregam representações do que faz parte da cultura do país.
“A gente tem essa concepção no senso comum de que a música é um retrato da sociedade. Eu acho que mais do que isso, a música é a sociedade, ela compõe a nossa cultura. Então assim como ela representa práticas culturais que existem, no sentido de torná-las metáforas, de criar representações das práticas que existem, ela também reconstrói práticas e as torna presentes”, refletiu a especialista. Hermeto destacou o caráter crítico das letras e até mesmo do formato das composições da MPB, muito marcados pela ironia, e defendeu que a situação com a música de Chico Buarque deve ser lida com toda a ironia que carrega.
“O pedido que a Nara Leão faz pro Chico é um pedido para cantar ironia. Eu não acredito que naquele momento eles não tivessem noção de que o que se propunha ali era uma crítica a essa realidade”, declarou a professora, afirmando também que o posicionamento do compositor diz mais respeito ao contemporâneo e à maneira como os radicalismos e o conservadorismo vêm agindo sobre a cultura nacional. A professora defendeu que reconhecer que as diferentes formas de vida precisam ser vistas criticamente, sem que tenham sua existência deslegitimada ou apagada. “É preciso pensar na historicidade das práticas e produtos culturais. Silenciar essas formas de vida só vai fazer com que elas fiquem cada vez menos visíveis”, completou a entrevistada.
Ouça a entrevista completa no Soundcloud.
Produção: Carlos Ortega, sob orientação de Luiza Glória
Publicação: Enaile Almeida, sob orientação de Luiza Glória