‘A Constituição é uma comunidade de princípios’, afirma Menelick de Carvalho
Referência nacional em Direito Constitucional, professor da UnB rejeita mudanças na CF/88 e alerta para perigo de perda de direitos
Questionada e ameaçada em diversos momentos, a Constituição Federal (CF/88) deve ser preservada na medida em que sua essência, democrática e inclusiva, transcende o próprio texto e norteia avanços sociais. Essa é uma das premissas defendidas pelo professor da Universidade de Brasília (UnB) Menelick de Carvalho Netto, homenageado no Congresso 1988 – 2018: o que constituímos?, que está sendo realizado na Faculdade de Direito da UFMG. Ex-aluno e ex-professor da UFMG, Menelick Netto vai ministrar, na noite desta sexta-feira, dia 5, a conferência A tensão entre memória e esquecimento nos 30 anos da Constituição de 1988, que encerra o evento.
Em entrevista ao Portal UFMG, Menelick de Carvalho Netto, um dos mais respeitados constitucionalistas brasileiros, falou sobre a trajetória de proteção aos direitos das minorias inaugurada pela CF/88 e destacou que o dispositivo deve ser reinterpretado conforme as demandas de cada época, sem prejuízo de seus princípios basais. Ao considerar “inconstitucionais” tanto o processo que culminou com o impedimento da presidente Dilma Rousseff quanto a EC 95 [que estabelece um teto para investimentos públicos nos próximos 20 anos], o jurista alertou para o iminente risco de retrocesso ao tempo anterior à chamada "Constituição Cidadã".
Leia os principais trechos da entrevista:
Uma das premissas que embasam as discussões do Congresso da Faculdade de Direito é a de que a CF/88, desde antes da promulgação até os dias de hoje, sofreu e vem sofrendo “ataques” de diversas frentes. Quais aspectos da CF foram e ainda são alvos de críticas?
É importante resgatar a origem da legitimidade da CF/88. Ela veio de um processo constituinte bastante inesperado, que fugiu, inclusive, do que havia sido planejado. Tradicionalmente, até então, uma comissão de notáveis elaborava os projetos de Constituição, ou seja, tratava-se de um trabalho constituinte puramente parlamentar. Em outras ocasiões, o conjunto de leis fora simplesmente outorgado pelo governante.
O processo constituinte que começou em 1987, por sua vez, percorreu caminho bem diferente. Foi participativo e produziu um fluxo comunicativo muito grande, entrando na casa de todos os cidadãos pela televisão. E isso aconteceu apesar da vigência de um Congresso conservador – foi na época que surgiu a designação Centrão para definir um grupo de parlamentares de orientação conservadora. O discurso de Ulysses Guimarães [então presidente da Assembleia Constituinte], caracterizando o novo texto como a “Constituição Cidadã”, foi impressionante.
Mas houve quem dissesse que a CF estava fadada ao fracasso. Criticou-se seu tamanho, e ela também foi vista, por alguns setores, como pretensiosa. Na CF/88, foi consolidada a seguridade social, e habilitou-se uma série de direitos que dependem de serviços e do Estado. O acesso universal à saúde, por exemplo, foi garantido. Também ficou estabelecido que a fiscalização sobre o cumprimento desses direitos caberia aos próprios afetados, representados por conselhos nacionais, estaduais e municipais.
Além disso, houve uma série de avanços em termos de inclusão. Parte da CF/88 foi dedicada a políticas públicas que procuraram garantir igualdade e liberdade nos diferentes campos materiais, como saúde, meio ambiente e direito do consumidor. Desde o início, houve uma crítica muito ácida sobre isso.
Nesta campanha eleitoral, aventou-se tanto a ideia de formação de um ‘colégio de notáveis’ para elaborar uma constituição, ou seja, sem participação popular, quanto a de convocação de uma assembleia constituinte exclusiva. Precisamos mesmo de uma nova constituição? A CF/88 se exauriu?
Muito pelo contrário. Não é o momento propício para convocação de uma nova constituinte, seja qual for sua natureza. Também não tem sentido a ideia de revisão constitucional. Em vez disso, temos que proteger a atual Constituição e todos os direitos que ela foi capaz de instaurar ao longo desses 30 anos. Caminhamos muito, sobretudo na proteção das minorias. Abriu-se um processo de inclusão muito grande.
Na verdade, a Constituição é muito mais do que um texto. Ela deflagra processos que são interpretativos e cuja expansão está a cargo dos poderes Executivo e Judiciário. Isso significa que não somos meros leitores e cumpridores do texto constitucional. Logo, não deve haver a discussão sobre a reescritura desse conjunto de leis.
A discussão deve transcender o texto porque a Constituição, na verdade, constitui uma comunidade de princípios. O problema reside naquilo que já fizeram com a CF. Um exemplo é a infeliz interpretação, pela maioria do Congresso, que resultou na aprovação do impeachment de Dilma Rousseff, deposta da Presidência sem ter cometido crime de responsabilidade.
Mas em outros momentos esse ‘transcender interpretativo’ proporcionou avanços...
A CF/88, por conta de suas diretrizes, funcionou com um farol para os avanços em termos de inclusão e afirmação dos direitos das minorias, desdobrados em uma série de iniciativas como ampliação de acesso a escolas, universidades e empregos.
No caso do reconhecimento da união homoafetiva no Brasil, houve um “alargamento” do texto constitucional. O texto original concedia somente a casais heterossexuais os direitos inerentes ao casamento, mas a Justiça encarregou-se de restabelecer essa regulamentação. Essa medida foi constitucional porque baseou-se na interpretação da Constituição, que assegura igualdade de direitos a todos os brasileiros. Os mais conservadores tendem a imaginar que foi um descumprimento da Constituição, mas o texto, na verdade, foi reinterpretado porque o preconceito é problemático constitucionalmente. Hoje, a garantia de direitos está ameaçada, as perspectivas políticas estão complicadas. Mas o momento é de continuar defendendo os princípios da nossa Constituição, pois vivemos uma perigosa onda mundial de perda de direitos.
A Constituição Federal já recebeu perto de 100 emendas, e uma das mais controversas é a EC 95, que, para muitos, limita a capacidade do Estado de cumprir compromissos sociais consagrados pela própria Carta. Em que medida a EC 95 é inconstitucional?
Sua ação em caráter temporário foi o argumento usado por seus defensores para considerá-la constitucional, mas a EC 95 gera, de fato, o risco de retrocesso e perda de direitos. Há, sim, um problema básico de constitucionalidade.
É importante lembrarmos que a CF/88 foi capaz de constituir uma comunidade que luta pelos seus direitos. Temos que lutar pela continuidade desses direitos, sob pena de pôr em risco a própria estrutura constitucional. A ideia deflagrada pela CF/88 é permanente e supera seu texto, independentemente de emendas. Nossas maiores conquistas não vieram de emendas, mas de leituras mais avançadas e modernas da própria Constituição.
Quais os principais desafios do constitucionalismo brasileiro na atualidade?
É preciso manter essa comunidade de princípios sempre preparada para receber inclusões e pretensões a direitos, além de aberta a debates públicos para superar os preconceitos que vêm à tona. Devemos afastar esse risco imenso de voltarmos a um estado anterior, em que não havia Constituição e a brutalidade do poder prevalecia. As cartas constitucionais da ditadura garantiam o governo, mas não a cidadania, traindo, portanto, o próprio conceito de constitucionalismo.