Discussão sobre realidade de pessoas transgênero encerra debates do Festival de Verão
Servidora da UFMG falou sobre as repercussões da sua transformação no ambiente de trabalho
A programação do Festival de Verão da UFMG termina nesta quinta-feira, 14, com a festa Tucu com Tacacá convida Bloco da Farofa. O evento será realizado às 19h, no Conservatório, que fica na Avenida Afonso Pena, 1534.
Pela manhã, encerrando os debates, a discussão Transvivência: diálogos sobre o direito à diferença na universidade reuniu o professor da Faculdade de Educação (FaE) Paulo Henrique de Queiroz, a professora Márcia Lousada, diretora de Políticas de Apoio Acadêmico da UFMG, e a servidora Samara Gabi Pimenta, que decidiu, há pouco mais de dois anos, assumir a identidade feminina.
O pesquisador enfatizou a importância da política de nome social, que serve como “uma porteira” em direção ao acolhimento. Mas advertiu que a norma, apesar de ampla [disponível, inclusive, para pessoas que simplesmente não gostam do próprio nome], é uma medida insuficiente.
“Institucionalmente, é um avanço, mas é preciso ‘atualizar aquilo que foi prescrito’. As pessoas estão constantemente em militância, para fazer valer seu direito, e isso é sofrido porque gera exposição”, argumentou. De acordo com Paulo Henrique, a polêmica a respeito do uso do banheiro por pessoas trans é uma forma de violência que acomete esse público.
“Não adianta ter instituído o nome social se não se pode usar o banheiro. São necessárias campanhas maciças e debates mais amplos no interior da Universidade para lidar com essas incongruências”, afirmou.
Sobre esse aspecto, Márcia Lousada, uma das curadoras do Festival e mediadora do debate, salientou que a UFMG é uma comunidade diversa em que vigoram posicionamentos diferentes. “Há pessoas a favor e contra a construção de banheiros de uso universal. A luta pela desconstrução da transfobia é um processo lento, aquém da demanda social. Aos poucos, estamos avançando”.
Trajetória
Servidora da UFMG desde 2004, a técnica em eletrônica Samara Gabi Pimenta relatou sua trajetória de transição de gênero e as repercussões no departamento onde trabalhava na Universidade. “No final de 2016, sofri a maior depressão da minha vida e considerei seriamente a possibilidade de me matar. Eu me sentia sozinha no mundo, e esse mundo estava me destruindo”, contou. Ela atribui seu desespero em grande parte ao fato de estar “vivendo num corpo masculino”.
A ruptura teve início, segundo a servidora, justamente no momento em que resolveu realizar um “último desejo”. “Eu decidi sair de casa usando roupas femininas. Pensei que dentro de alguns dias não estaria viva para passar vergonha, então, senti que podia tudo. Vesti uma minissaia e atravessei uma rua muito movimentada. Foi como uma declaração de guerra contra a sociedade”, retoma.
A partir daquele momento, que considerou “libertador”, Samara Gabi se comprometeu a continuar vivendo e não mais sucumbir à repressão contra sua individualidade. Em sua opinião, a classe média “anda em um trilho e fica nos apontando o dedo, dizendo como devemos nos comportar e vestir. Decidi enfrentar tudo isso”, revela.
Amparada pela política universitária de mudança de nome social, válido para toda a comunidade acadêmica e usuários dos programas ligados à UFMG, Samara realizou sua mudança de gênero “de maneira brusca e impactante, de um dia para o outro”. Ela diz que foi vítima de escárnio e deboche de muitos colegas. “Aquilo me destruiu, e eu queria sumir, mas tive coragem para seguir”.
Depois de algum tempo, durante o qual “ressignificou suas relações pessoais” dentro da Universidade, a servidora conseguiu remoção para outra unidade acadêmica. A partir daí, reconstruiu a sua história. Atualmente trabalha na Escola de Engenharia, onde é acolhida e se sente muito valorizada profissionalmente.
De acordo com a técnica, ainda hoje costuma ser necessário algum esforço para fazer prevalecer seus direitos, por exemplo, no que se refere à atualização do seu nome social nos vários sistemas internos da Universidade. “Ao longo dos anos, deixei várias ‘pegadas’ em meus registros, com o nome de batismo”, justifica a servidora. “Além do mais, muitos gestores e funcionários da UFMG ainda não estão preparados para lidar com seus colegas trans”, observa.
Com base em sua própria experiência, a Samara Gabi sugere a outras profissionais em transição de gênero que recorram à orientação das instâncias competentes dentro da instituição e se transformem “gradativamente” no ambiente de trabalho, a fim de se reduzir o choque por parte das pessoas ao redor.
“Primeira servidora trans da universidade, sou como uma ‘testadora beta’ e tenho a tarefa de detectar as inconsistências e falhas no provimento de dignidade às pessoas nessa condição. Certamente tenho ajudado a consolidar uma realidade muito melhor para as que vierem depois de mim”, reflete.