Pesquisa e Inovação

Economista investiga produção do espaço em comunidade quilombola

Estudo valoriza dimensões como passado comum, cotidiano vivido e potencialidades e expectativas

Quilombo
Pesquisadora defende que Estado adote políticas que respeitem comunidades tradicionais
Renata Vieira

As 55 famílias que integram a Comunidade Quilombola São José do Barro Vermelho, no Norte de Minas, nunca estiveram completamente seguras quanto à sua permanência no território, ocupado desde há muito tempo por trabalhadores de fazendas da região. Na última década, porém, a situação de insegurança ganhou contornos formais, com a criação do Parque Estadual da Serra das Araras. A explicação é simples: a legislação que rege parques do gênero não prevê a presença de moradores nessas áreas.

A ameaça de retirada dessas famílias tem impacto sob vários aspectos. “O território não é apenas área de cultivo e fonte de renda, está em jogo a vida individual, familiar e coletiva”, afirma a economista Renata Guimarães Vieira, autora de pesquisa sobre a comunidade, que lhe valeu o título de doutora pelo Programa de Pós-graduação em Economia, do Cedeplar/Face. Sua tese foi objeto de matéria publicada na edição 2.030 do Boletim UFMG.

Renata Guimarães pesquisou o quilombo com a preocupação de entender as formas de produção do espaço, com base, sobretudo, nas ideias do filósofo e sociólogo francês Henri Lefebvre. O conceito abrange as dimensões do passado comum – memória oral e escrita, memória afetiva e valores simbólicos –, do cotidiano vivido – como aquele grupo percebe e usa o território para produção e lazer, como se sente ali, se livre ou sob pressão – e do futuro, representado pelas potencialidades e expectativas dos habitantes naquele contexto.

“Meu trabalho indica uma relação entre as comunidades tradicionais e um espaço de possibilidades, comprometido com a diversidade. É necessário fortalecer o entendimento de comunidades desse tipo como espaços de resistência a uma narrativa fundada na modernidade e na colonialidade”, diz a pesquisadora, associando essa narrativa à produção do espaço por parte do Estado, geralmente interessado em “normatizar, higienizar e suprimir a diversidade”.

Atividade e valores
Do ponto de vista econômico, a autora identifica como objetivo central da comunidade a autonomia sobre a terra e sobre o tempo de trabalho. Segundo ela, o interesse não é apenas pela independência produtiva – de fato, os quilombolas preferem não estar “fichados”, como se referem ao registro da carteira de trabalho –, mas por ter condições, por exemplo, de conviver com os filhos, a quem ensinam a atividade laborativa, valores espirituais e morais, a história do grupo e o sentido de comunidade.

“Para esse grupo, o trabalho não está separado da vida e pode mesmo se relacionar à infância, de forma lúdica e pedagógica. É parte de um contexto em que os mais velhos transmitem formas de convivência com a natureza, ou seja, promovem a reprodução de seu modo de vida”, explica a pesquisadora, acrescentando que as relações de trabalho também demarcam laços de parentesco e compadrio.

Graduada em Economia pela UFMG, Renata Vieira fez cinco ­visitas, de sete a dez dias de duração, à Comunidade Quilombola São José do Barro Vermelho, que é reconhecida pela Fundação Palmares. Acolhida na casa de um dos líderes comunitários, Seu Domingos, ela entrevistou 34 famílias, mas valoriza as conversas informais e a observação do cotidiano no território, que está localizado na divisa dos municípios de Serra das Araras e Januária. O Rio Pardo, que delimita as cidades, atravessa as terras da comunidade.

Incoerência
Renata Vieira lembra que conflitos como os que marcam o dia a dia da comunidade, alvo de sua pesquisa, são recorrentes no Brasil, muitas vezes gerados pela criação de parques sobrepostos aos territórios ocupados pelas comunidades tradicionais. “Essa constatação por si só indica que elas preservam, efetivamente, o ambiente. Mas, ao mesmo tempo que demonstra valorizar esse aspecto ao demarcar uma área de proteção, o Estado não reconhece o papel da comunidade tradicional”, diz a pesquisadora. “É incoerente expulsar quem está preservando, se no entorno do Parque da Serra das Araras há desmatamento e poluição gerada principalmente pelas grandes fazendas produtoras de capim, vendido em larga escala para criadores de gado.”

A população quilombola de São José do Barro Vermelho tem sofrido, segundo relato da pesquisadora, restrições à coleta de frutos, como o pequi e o buriti, ao acesso à rede elétrica e à versão rural do programa Minha Casa Minha Vida. Para Renata, o formato da modalidade-parque é socialmente desrespeitoso – ela defende, para regiões que abrigam grupos como os quilombolas, soluções como as reservas extrativista e de desenvolvimento sustentável, que possibilitam a permanência dos moradores.

“Em vez de tratar os povos tradicionais como pobres, atrasados e ignorantes, como é usual, é preciso reconhecer e valorizar a relevância dos diferentes modos de vida. E não é porque esses grupos existem há séculos que eles estão parados. Essas comunidades são tão dinâmicas quanto os grupos urbanos. Eles produzem o espaço e produzem diversidade. E têm muito a nos ensinar”, enfatiza Renata Vieira.

Tese“Nós somos raiz do lugar”: produção do espaço na Comunidade Quilombola São José do Barro Vermelho
Autora: Renata Guimarães Vieira
Orientador: Roberto Monte-Mór
Defesa: fevereiro de 2018, no Programa de Pós-graduação em Economia da Face

Itamar Rigueira Jr. / Boletim 2030