Medicina enfrenta crise climática com ações em rede, conexão com o ambiente e ajustes em currículos
Reportagem da Rádio UFMG Educativa mostra como as áreas de saúde de instituições de ensino e pesquisa têm trabalhado para mitigar os efeitos dos eventos extremos
Um evento climático extremo, marcado por chuvas acima do esperado e enchentes devastadoras. Ao todo, 2,4 milhões de pessoas afetadas, 806 pessoas feridas, 182 mortes confirmadas e 29 pessoas desaparecidas. Os números divulgados pela Defesa Civil dão a dimensão da tragédia climática responsável por afetar 478 municípios do estado do Rio Grande do Sul, nos meses de abril e maio deste ano.
Uma rápida resposta à crise foi dada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que lançou a Rede de Emergência Climática e Ambiental (Reca). Sua missão é melhorar e automatizar as ações de monitoramento do tempo e da previsão de eventos extremos no estado do Rio Grande do Sul.
A rede reúne dezenas de pesquisadores. Coordenadora da Reca, a física e reitora eleita da UFRGS, Marcia Barbosa, explica algumas das razões que levaram à tragédia no Sul neste ano: “Cientistas climatológicas já avisavam que o aconteceu no Sul tem a ver, sim, com as mudanças climáticas. O que a nossa coalizão de pesquisadores pretende construir é um serviço climático que atue tanto na formação de recursos humanos nas escolas quanto de gestores da Defesa Civil. Queremos um sistema que faça um monitoramento mais preciso desses eventos climáticos extremos.”
Meio ambiente e medicina
De acordo com diversos especialistas em meio ambiente, a humanidade enfrentará, nas próximas décadas, grande número de eventos climáticos extremos e um grande aumento das temperaturas globais. Segundo a Organização Meteorológica Mundial, os próximos quatro anos devem ser os mais quentes do planeta desde o início das medições. Uma das esperanças para ajudar as pessoas a sobreviver vem da medicina, principalmente das pesquisas na área de saúde.
Na Faculdade de Medicina da UFMG, há 23 anos, o Projeto Manuelzão une a medicina à causa ambiental. Reconhecido por diversas premiações, o projeto luta por melhorias nas condições ambientais para promover qualidade de vida. O Manuelzão atua desde 1991 na região da bacia hidrográfica do Rio das Velhas.
Para o coordenador do projeto, professor Marcus Polignano, o evento climático extremo ocorrido no Sul neste ano evidencia a necessidade de a medicina ter como foco as emergências climáticas. “A gente tem procurado desenvolver a consciência de que a medicina preventiva se dá com a construção de um novo modelo de cidade. O desenvolvimento não pode substituir a natureza por um artificialismo que não cumpre as mesmas funções que a natureza. Entender que os serviços ambientais são tão essenciais quanto outros produzidos pelo sistema de capital é fundamental. Água e floresta são serviços insubstituíveis, ou seja, uma vez destruídos, não podem ser reparados", argumenta. Segundo Polignano, as consequências têm sido graves: perdas de vidas humanas, doenças, perdas materiais, quadros de depressão e de doenças mentais.
Formação de profissionais de saúde
A Universidade de São Paulo (USP) mudou a grade curricular do curso de Medicina em 2022. O objetivo é fazer frente aos efeitos das mudanças climáticas. Tópicos como epidemias, doenças respiratórias e saúde planetária foram abordados nas aulas da primeira turma da disciplina, criada há dois anos.
Um dos professores responsáveis pela adaptação do currículo da medicina da USP às emergências climáticas é o professor Nelson Gouveia, titular do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da instituição paulista. Em sua avaliação, o tema ainda precisa ser mais trabalhado nos cursos de medicina para que os profissionais de saúde sejam preparados para os efeitos dos eventos climáticos extremos na saúde física das pessoas.
“Os eventos climáticos extremos têm impactos diretos na saúde, física e mental. Uma onda de calor tende a agravar quadros de doenças cardiovasculares. Alterações no clima também impactam a produção de alimentos. E isso vai gerar insegurança alimentar, fora as questões de saúde mental. A própria concepção de que o clima do planeta está mudando traz sofrimento mental para muita gente, principalmente para a população mais jovem", argumenta Gouveia.
Planejamento e aprendizado
Mudanças climáticas, desastres e saúde é um dos livros que pode ajudar professores e estudantes de medicina a ter compreensão mais apurada dos efeitos das emergências climáticas na saúde. Vencedora do prêmio da Associação Brasileira das Editoras Universitárias, em 2023, a obra tem entre os seus organizadores o geógrafo Christovam Barcellos, pesquisador titular do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Osvaldo Cruz.
Para Barcellos, planejamento é palavra-chave para lidar com eventos climáticos extremos: “E a saúde é o setor que pode entender melhor como os eventos climáticos nos afetam, porque ele está na ponta, ouvindo as pessoas que estão sofrendo. É preciso compreender o nexo existente entre um evento climático e a saúde. Isso é importante para avaliar os mecanismos que atuam no agravamento ou diminuição dos impactos.”
O professor ressalta que desastres anteriores ajudam a lidar melhor com o que está por vir: “Durante a enchente de Santa Catarina, em 2008, quase todo o Vale do Itajaí ficou inundado durante também muito tempo. Isso gerou um problema de saúde que a gente não esperava, um surto de AVC, de derrame cerebral, e isso serviu de aprendizado. Isso foi demonstrado estatisticamente e serviu de alerta, agora no Rio Grande do Sul. No caso de pessoas com problemas de hipertensão, tomamos providências para distribuir remédios, fazer diagnósticos rápidos e tratar essas pessoas antes que tivessem um quadro mais grave."
Radiodocumentário especial
Para problematizar como a medicina deve atuar para amenizar os impactos dos eventos climáticos extremos para a saúde humana, a Rádio UFMG Educativa produziu o radiodocumentário Emergências climáticas: a esperança vinda da medicina, concebido pelo jornalista Ruleandson do Carmo, com sonoplastia de Cláudio Zazá. O material pode ser ouvido no Spotify e no SoundCloud, no formato de podcast.