Estudo atualiza informações sobre plantas descritas por Frei Vellozo
Conhecimento popular de muitas espécies identificadas pelo pioneiro da botânica brasileira, no século 18, estava esquecido
Quase duas mil espécies vegetais encontradas nas matas brasileiras do século 18 e descritas na primeira obra de botânica do país foram revisadas em minucioso trabalho de recuperação de dados e imagens. Com base em material organizado à época pelo frei Mariano da Conceição Vellozo, a professora Maria das Graças Lins Brandão, da UFMG, identificou 371 plantas úteis e medicinais, cujas informações, atualizadas e organizadas, serão reunidas em livro. O estudo é abordado na reportagem de capa da edição 2013 do Boletim UFMG.
Projeto selecionado na primeira edição do Programa Professor Residente no Campus Cultural UFMG em Tiradentes, o trabalho gerou diversas atividades com professores e alunos das redes públicas da região, onde nasceu Frei Vellozo (1742-1811). A busca por maior inserção da Universidade na comunidade local é uma das características do Programa, que recebe inscrições até 21 de maio para a segunda edição.
“A execução desse projeto possibilita a recuperação e a divulgação de dados e imagens de espécies descritas por Frei Vellozo, até então desconhecidas e sem a devida interpretação”, afirma a pesquisadora. Ela ressalta que, além de ampliar o conhecimento sobre a riqueza da biodiversidade brasileira, da vegetação local e de suas tradições, o projeto contribui para que a população veja a ciência “como o melhor instrumento de valorização e valoração das plantas”.
Espécies resilientes
Carqueja, pimenta rosa e ora-pro-nobis são algumas das 1.639 espécies vegetais reunidas por Frei Vellozo, em 1790, nos 11 volumes da Florae Fluminensis. “O conhecimento popular sobre muitas outras plantas descritas na obra, como a congonha e a língua de tucano, foi esquecido”, lamenta a pesquisadora. Algumas são bastante conhecidas e usadas ainda nos dias de hoje, como Stryphnodendron adstringens (barbatimão), Bidens pilosa (picão preto) e o Phyllanthus niruri(quebra-pedra). “A capeba (Piper umbellatum L., família Piperaceae), por exemplo, que hoje é considerada uma panc [planta alimentícia não convencional], foi citada por Vellozo como aperiente, isto é, que abre o apetite”, comenta Maria das Graças. Atualmente é bastante estudada e tem efeito confirmado para tratamento de problemas hepáticos.
A espécie Petiveria alliacea L., da família Phytolaccaceae, é conhecida como pipi, nome atribuído por Vellozo. Exala forte cheiro de alho e já foi usada como tempero. Na obra Florae Fluminensis, o autor diz que a planta “tem odor forte, principalmente as raízes”, e informa: “as pessoas do interior e os africanos a usam como remédio”. Já a Piper aduncum L., da família Piperaceae, foi descrita assim pelo botânico: “pimenta chamada apertarruão porque é adstringente e usada pelas mulheres para voltar a ter a sensação de virgindade.” A planta é conhecida hoje também pelo nome de falso jaborandi, devido a sua atuação eficaz contra a queda de cabelos. Ela contém taninos que desencadeiam atividade adstringente.
A Eryngium pristis foi denominada por Vellozo como “língua de tucano”, e a descrição que fez dela dava conta de que sua preparação era usada como gargarejo na inflamação da garganta. Trata-se de uma espécie nativa pouco conhecida e usada hoje. “Não há estudos que comprovem ação anti-inflamatória”, esclarece Maria das Graças, que fotografou a planta no Parque das Águas Santas, de São João del-Rei. A pesquisadora ressalta que o naturalista trabalhou com a chamada informação primária, em um tempo “em que as pessoas usavam as plantas, ainda havia as florestas e seus moradores, os índios”.
A metodologia de trabalho de Maria das Graças Lins Brandão consistiu, inicialmente, em analisar a obra de Vellozo e traduzir o texto, originalmente escrito em latim, com a colaboração de Juliana de Paula-Souza, da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), e do padre Lauro Palú, do Santuário Caraça. Na etapa seguinte, a pesquisadora desenvolveu extensa e minuciosa revisão das informações disponíveis, assinalando todas as plantas que continham alguma informação referente a nomes populares (indígenas, portugueses e brasileiros), a usos tradicionais e a cultivo em hortas e quintais, o que sugere alguma utilidade da planta.
“Aquelas que continham esses dados foram extraídas e organizadas em tabela. Conseguimos recuperar dados sobre 371 espécies, nativas e exóticas, presentes na obra. O passo seguinte foi atualizar os nomes científicos”, informa Maria das Graças. Esse trabalho foi realizado pela botânica Juliana de Paula-Souza.
A etapa de trabalho de campo visou localizar e registrar, em Tiradentes e no entorno, as plantas úteis e medicinais recuperadas na obra. Foram feitas excursões que possibilitaram localizar e capturar imagens atuais de diversas espécies. Parte dos trabalhos contou com a colaboração de Luiz Cruz, conhecedor da flora local. Outras expedições foram apoiadas pelo Instituto Estadual de Florestas (IEF) de São João del-Rei. Imagens de dezenas de plantas foram obtidas tanto no município de Tiradentes quanto nas serras de São José e dos Lenheiros.
Presença regional
Outra etapa do trabalho tem sido realizada nas escolas das redes estadual e municipal da região, utilizando materiais didáticos e de divulgação científica sobre plantas medicinais desenvolvidos anteriormente pelo Centro Especializado em Plantas Aromáticas, Medicinais e Tóxicas (Ceplamt) da UFMG, criado há mais de uma década por Graça Lins Brandão. O material inclui publicações, documentários, aulas em CDs e um kit de laboratório, com o qual é possível executar testes simples para identificação dos princípios ativos das plantas.
Em reuniões com os órgãos municipais e estadual de educação, no fim de 2017, foram planejadas ações conjuntas, como treinamento de professores para conhecer os aspectos técnico-científicos das plantas medicinais, a fim de enriquecer o ensino de ciências. Desde então, já foram realizadas oficinas e visitas às escolas, com o objetivo de conhecer as condições de trabalho dos professores e verificar a existência de infraestrutura, como laboratório e horta, para programação de atividades locais.
A pesquisadora relata o grande interesse e a participação dos estudantes nas atividades, “especialmente naquelas relacionadas à manipulação de vidrarias e outros materiais de laboratório”. Segundo ela, o conjunto de informações, antigas e atuais, obtido durante a pesquisa subsidiará a preparação de novos materiais que serão distribuídos nas escolas. Também está prevista, para julho deste ano, montagem de exposição, acompanhada de oficinas sobre plantas medicinais, nas dependências do Museu Casa Padre Toledo, no Campus Cultural UFMG em Tiradentes.
A obra Florae Fluminensis, escrita por encomenda do vice-rei do Brasil, Luís de Vasconcelos e Sousa, só foi publicada de 1825 a 1831, após a morte do autor. “A trajetória do Frei Vellozo é muito similar à dos cientistas brasileiros dos dias atuais, que convivem com a retirada de financiamento e com a falta de reconhecimento do valor do seu trabalho”, compara Maria das Graças.
De acordo com biógrafos de Vellozo, depois de alguns revezes em sua carreira, que incluem promessas oficiais não cumpridas, ida a Portugal e retorno ao Brasil, os originais do trabalho ficaram desaparecidos até 1824. A obra foi impressa por ordem do imperador Pedro I, que vislumbrou na divulgação do trabalho de um naturalista brasileiro uma forma de afirmação da nova nação.
Tendo saído de Minas Gerais para o Rio de Janeiro aos 20 anos, para seguir carreira eclesiástica, Frei Vellozo também conviveu com índios, em São Paulo. Maria das Graças acredita que ele incorporou à obra conhecimentos adquiridos na infância, na região de Tiradentes. Frei Vellozo morreu no Rio de Janeiro, em 1811.