Grupo vai propor modelo epidemiológico para a covid-19 baseado em interações sociais
Pesquisadores da UFMG e de universidade equatoriana analisarão as redes de contatos das pessoas, como trabalho, vizinhanças e transporte público, para projetar a evolução da pandemia
As pesquisas que visam ao planejamento de ações para o enfrentamento da pandemia do Sars-CoV-2 não estão restritas aos campos das ciências biológicas e da saúde. Um exemplo é o estudo que está sendo desenvolvido pelos departamentos de Sociologia da Fafich e de Estatística do ICEx, ambos da UFMG, em parceria com a Universidade Central do Equador.
Trata-se de projeto destinado à implementação de um modelo epidemiológico condicionado às estruturas sociais de contato, que utiliza a análise das redes de relacionamento e os lugares onde ocorrem os contatos entre indivíduos. Como as dinâmicas de contágio dependem dos fatores estruturais que organizam as interações, o estudo pretende gerar indicadores que possibilitam associar características epidemiológicas a diversos fatores sociométricos vinculados aos contextos sociais, como as vizinhanças, as escolas e o transporte público.
Os indicadores alimentarão três tipos de modelos epidemiológicos complementares, de caráter matemático, que possibilitarão estimar, de forma realista, o curso de pandemias relacionadas às síndromes respiratórias agudas, como é o caso da covid-19. “Os modelos epidemiológicos tradicionais não levam em conta um fator importante, que é o número de contatos que uma pessoa mantém em um dia comum, nos diversos círculos sociais da sua vida, como a casa, o trabalho, a vizinhança, o transporte púbico e a escola”, afirma o professor Silvio Salej Higgins, do Departamento de Sociologia, coordenador da pesquisa.
Segundo ele, as interações dos indivíduos precisam ser levadas em conta, porque entender os níveis de isolamento social não é suficiente para a compreensão da evolução da pandemia no país. “As empresas de telefonia já conseguem medir as taxas de isolamento social em tempo real, usando a geolocalização. Porém, esses dados dizem apenas onde estou, mas não conseguem afirmar com quantas pessoas estou, ou se estou em ambiente aberto ou fechado”, exemplifica Salej.
Dois níveis
O professor Adrian Hinojosa Luna, do Departamento de Estatística, afirma que estimar o volume de contatos sociais dos indivíduos é determinante para restringir a circulação de agentes patogênicos que se propagam pelo ar, como é o caso do novo coronavírus. Por isso, o grupo está desenvolvendo uma metodologia para mensurar o número de contatos que uma pessoa tem no dia a dia.
“Trabalhamos em dois níveis. O primeiro prevê modelos determinísticos que mostram o desenvolvimento epidemiológico como um sistema de equações diferenciais ordinárias. Já o segundo trabalha com modelos que representam grafos aleatórios. Este determina aleatoriamente cada contato de pessoa a pessoa, enquanto aquele usa a taxa de contatos entre os grupos de pessoas”, explica.
Para mensurar as taxas de contato diário, geralmente é feita uma pesquisa que utiliza a técnica de “diário epidemiológico”. Trata-se da aplicação de um questionário a pessoas que são acompanhadas ao longo do tempo. Como esse método é caro, o grupo responsável pelo estudo vai aplicar um questionário em uma área delimitada, o Aglomerado da Serra, na Região Sul de Belo Horizonte. Serão observadas 1 mil pessoas de quatro faixas etárias: 0 a 14 anos, 15 a 34 anos, 35 a 50 anos e maiores de 60 anos. Com base nas informações coletadas, o grupo será capaz de dimensionar o tipo e a quantidade de contatos desses indivíduos e, a partir daí, criar projeções de contágio e evolução da pandemia nas outras regiões de Belo Horizonte e em outras cidades no Brasil.
E se as aulas voltassem?
Após a inserção dos dados coletados no modelo desenvolvido pelo grupo, é possível fazer comparações sobre o impacto do distanciamento, das vacinas e de outros fatores que previnem a covid-19 nos diversos círculos sociais. Uma das projeções já realizadas pelo grupo mostrou o que poderia acontecer caso as escolas voltassem a funcionar.
“Fizemos uma simulação antes da abertura das escolas. Usamos parâmetros para calcular a propagação temporal dos contágios, levando em conta, entre outros fatores, o número de alunos infectados que frequentam uma determinada turma na escola. Nossa metodologia foi capaz de mostrar em quantos dias um percentual de alunos e seus familiares seriam infectados por meio da sua rede de contatos no ambiente da escola e da família. Nesse caso específico, foi constatado que abrir as escolas, sem testar a população escolar massivamente, seria um tiro no escuro”, conta Silvio Salej.
O projeto, aprovado na chamada Pesquisas para enfrentamento da covid-19, suas consequências e outras síndromes respiratórias agudas graves, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), deve ser concluído em dois anos. A expectativa é que, ao fim do estudo, os pesquisadores tenham desenvolvido uma ferramenta que possibilitará fazer várias simulações sobre a evolução da pandemia de covid-19 e de outras síndromes respiratórias.
“Estamos criando uma espécie de calculadora que poderá ser usada pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Esse tipo de ferramenta favorece um planejamento mais específico para medidas de mitigação e controle, já que idades e ambientes sociais interferem na propagação da pandemia. Queremos introduzir na cultura epidemiológica do Brasil um modelo de medição ainda pouco conhecido por aqui”, diz Andreia Maria Pinto Rabelo, pesquisadora do projeto.
Pandemia como fenômeno social
O professor Adrian Hinojosa Luna destaca a necessidade de que a pandemia de covid-19 constitua um objeto de estudo no campo das ciências sociais, uma vez que essas pesquisas possibilitam compreender como as estruturas sociais condicionam as epidemias. “Não se pode isolar o tratamento da pandemia das questões sociais. As doenças são socialmente determinadas”, diz ele.
O professor Silvio Salej Higgins recorre ao pesquisador Bruno Latour para enfatizar que as doenças não são fenômenos estritamente biológicos. “Precisamos considerar um amplo leque de determinantes nas relações entre agentes humanos e não humanos. Se não entendermos o comportamento social, levando em conta, principalmente, as pessoas que vivem na pobreza e não podem se isolar, acabamos construindo uma ciência epidemiológica incompleta. Esse estudo é uma oportunidade de mostrar que a covid-19 é uma doença social, pois é mais letal para os grupos vulneráveis”, conclui Salej Higgins.