Obra de Marx transcende fronteiras disciplinares
Além dos campos social, político e econômico, legado do filósofo alemão alcança áreas como o direito e a educação
Os três livros que compõem O capital conferiram destaque para a abordagem sócio-político-econômica do pensamento de Karl Marx (1818-1883), mas o postulado teórico do pensador alemão não se circunscreve aos campos da economia, da sociologia ou da ciência política. Também são significativas suas contribuições nos campos da filosofia, da educação, do direito e até as artes, na perspectiva estética.
“A investida de Marx no campo do direito mostra um filósofo que realiza suas investigações em uma perspectiva contrária ao conhecimento fragmentado das ciências parcelares”, afirma o professor Vitor Bartoletti Sartori, da Faculdade de Direito, que se dedica às relações entre o marxismo e o direito. “Marx vai dizer, já em 1837, que o tratamento que dá ao direito é um tratamento filosófico. Ele não trabalha com a perspectiva disciplinar e, posteriormente, será um crítico do próprio direito”, demarca.
Em razão dessa potência abrangente e interpretativa de sua obra, o pensador alemão é apontado por intelectuais como Foucault e Paul Ricoeur como uma das bases do tripé intelectual que teria inaugurado o pensamento ocidental do século 20 em sua perspectiva interpretativista. Nietzsche e Freud seriam os outros dois sustentáculos dessa tríade.
Sobre os três, Foucault escreveu: "Interrogo-me se não se poderia afirmar que Freud, Nietzsche e Marx, ao envolverem-nos numa interpretação que se vira sempre para si própria, não tenham constituído para nós e para os que nos rodeiam, espelhos que nos reflitam imagens cujas feridas inextinguíveis formam o nosso narcisismo de hoje.”
Paul Ricoeur, de sua parte, vai denominar o trio como “mestres da suspeita”, considerando que essa perspectiva interpretativista inaugura uma constante suspeita em relação à razão, em uma espécie de rompimento com a crença na racionalidade como panaceia, ideia que em alguma medida atravessava os pensamentos filosóficos anteriores.
Patamar elevado
Em Carta ao Pai, texto de 1837, Marx conta que leu Friedrich Hegel (1770-1831) de cabo a rabo. É nessa época que ele se interessa pela filosofia do direito”, lembra Vitor Sartori. “Ele flerta não só com Hegel, mas também com Johann Gottlieb Fichte (1762-1814). Mas isso ocorre no início de sua carreira. A verdade é que logo Karl Marx se afasta disso tudo, do idealismo alemão, de Immanuel Kant (1724-1804), entre outros, na medida em que começa a formular o seu próprio pensamento, o de um crítico do direito e do modo de produção capitalista”, explica.
Segundo Sartori, esse afastamento da tradição clássica alemã coincide com a formulação por Marx de seu entendimento de que o direito, em si, é incapaz de lidar de modo resolutivo com as contradições que permeiam a sociedade. “À época da influência hegeliana, Marx vai colocar o direito em patamar elevado. Contudo, em dado momento, ele vai perceber que o direito, em si mesmo, não resolve, já que subjaz a ele a desigualdade social. Segundo Marx, com igualdade jurídica e política, em vez de você resolver a desigualdade econômica, na verdade você acaba reconhecendo-a e a justificando”, aprofunda o professor. “Dito de outro modo, o que Marx vai perceber e afirmar é que a igualdade jurídica não vai contra a desigualdade econômica e social, pelo contrário”, explica.
Sartori exemplifica como isso se dá. “Para vender sua força de trabalho no âmbito das relações capitalistas, você se coloca, em tese, como um igual diante daquele que vai comprá-la. Nesse sentido, você também é considerado um proprietário: o proprietário de sua força de trabalho. Sob essa perspectiva, além de ser proprietário, você disporia de liberdade de vender ou não essa força de trabalho. Contudo, o que Marx vai apontar é que essa liberdade é, de certo modo, muito limitada, já que vender a sua força de trabalho – e nas exatas condições que os detentores dos meios de produção estabelecem – é uma das poucas alternativas existentes. No fim das contas, essa liberdade não é liberdade alguma, mas praticamente um imperativo”, explica o professor. “Dito de outro modo, estamos falando de um processo que, mesmo sediado no âmbito do direito, assentado mormente na circulação de mercadorias, e diretamente alusivo às perspectivas de liberdade, igualdade e propriedade, segue sendo substancialmente desigual. Os detentores dos meios de produção enriquecem, e quem não os tem permanece refém de todo o processo. Nesse sentido, Marx se afasta de Hegel: ele percebe que, longe de romper com a desigualdade capitalista, o direito também a estrutura.”
Em seu próximo número, a Verinotio – Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas – publicação da qual Vitor Sartori é um dos editores – vai veicular um dossiê motivado pelos 150 anos de publicação de 'O capital', obra em que Marx estabelece seu pensamento socioeconômico.
A partir desse afastamento de Hegel, Marx começa a problematizar também a simples oposição entre direito e privilégio. Segundo o professor da Faculdade de Direito, o que Marx vai perceber é que “superar” os privilégios apenas no âmbito explícito do direito não resolve a questão, já que o próprio direito, de forma sub-reptícia, realiza a manutenção desses mesmos privilégios. “Na verdade, o próprio capitalismo substitui o privilégio pelo direito, em grande parte”, explica Sartori. Marx aponta que, para além do campo do direito, é preciso superar no campo prático as desigualdades que marcam as sociedades classistas – que no fundo se estruturam com base na supressão dos privilégios feudais, relacionados ao nascimento. “O mais importante para Marx não é o direito ou a luta por direitos: o central é a possibilidade de os indivíduos tomarem consciência de sua posição na sociedade burguesa e, no limite, colocarem-se, como classe, contra a existência das próprias classes sociais”, explica Vitor Sartori.
Para o professor da Faculdade, Marx percebe que, subjacente aos problemas que percebe no âmbito do direito e da política, estava o funcionamento econômico da sociedade. “É em razão disso que ele tira um pouco o foco de sua crítica do direito e da política para colocá-lo na economia política. Mas Marx não tenta fazer outra economia política. O que ele faz é estabelecer uma crítica à economia política, demarcando seus problemas”, explica o professor. Nesse ponto, o que está no horizonte do pensador alemão é a formação do que ele chamou de “indivíduos universalmente desenvolvidos”, que seriam aqueles não mais submetidos ao processo de reificação próprio da sociedade capitalista, em que cada ser parece figurar como um mero elo da cadeia produtiva.
“Reificação”, conforme o dicionário Houaiss: processo histórico em que a atividade produtiva, as relações sociais e a própria subjetividade humana, no âmbito das sociedades capitalistas, se transformam de forma a estarem cada vez mais identificadas e sujeitadas “ao caráter inanimado, quantitativo e automático dos objetos ou mercadorias circulantes no mercado".
Emancipação está no campo social
“O capitalismo traz meios de produção e capacidades humanas que se colocam como uma potência social. O problema é que a apropriação dessa potência social é feita de modo privado. É uma grande contradição. Para Marx, era preciso, portanto, não apenas se apropriar dessa força desenvolvida no capital, mas também transformá-la”, aponta Vitor, remetendo às observações de Marx sobre a necessidade da apropriação comunitária dos meios de produção. No âmbito dessas transformações estariam perspectivas como o rompimento da hierarquia do trabalho, a livre associação de produtores e a auto-organização dos trabalhadores.
“Marx diz que a emancipação humana não se encontra no campo político nem no campo do direito, mas no campo social. Ele tira a centralidade na questão do direito e da política para colocá-la na questão da própria estruturação da sociedade. Não falo só da estruturação econômica, mas da estruturação mesma da relação existente entre o Estado e a sociedade civil-burguesa”, explica o professor. E qual seria o caminho para essa (re)estruturação? A luta coletiva pela supressão da sociedade capitalista – é o que Marx vai afirmar. “Nesse momento, tem-se em Marx a constatação da possibilidade da emergência da consciência de classe, da superação da perspectiva do indivíduo atomizado, simples portador de uma mercadoria. Tomar consciência do papel que os trabalhadores exercem e do papel que tem a burguesia em um sistema de produção do capital significa compreender a própria estruturação desse sistema. No limite, eu diria que esse processo é algo que pode redundar no modo como se pode perceber, hoje, o anacronismo da própria burguesia e do modo de produção capitalista”, diz Sartori.
“Afinal, qual é a necessidade da burguesia? Ou seja: qual a necessidade da apropriação privada da produção social? Ela é necessária para o processo produtivo? Não mais”, demarca Vitor. “Com a financeirização da economia, isso já está – mesmo dentro do capitalismo – comprovado, de certo modo. O controle da produção já pode ser exercido diretamente pelos trabalhadores, conforme o chamado toyotismo – mesmo que com sinal trocado – mostrou. Na medida em que a apropriação está pulverizada nos acionistas, comprova-se que uma apropriação coletiva é também possível; a questão é pensar em uma forma de apropriação coletiva e não excludente, que só pode ter por base os ‘produtores livremente associados’. Marx chama isso de socialismo”, diz.
Trabalho e educação
A teoria social postulada por Karl Marx também vai legar uma grande contribuição para o campo da educação – em especial, o campo comumente denominado “trabalho e educação”, que se interessa pela forma como o trabalho influencia o processo de formação das pessoas – quer seja profissional ou tecnológica, quer seja humanística. Não por outro motivo, vários nomes do pensamento pedagógico brasileiro foram influenciados por suas obras, entre eles Dermeval Saviani e Gaudêncio Frigotto, para ficar em dois contemporâneos.
“O pensamento de Marx nos leva a compreender a educação como um processo de formação ampla do ser social. Toda a área do trabalho e educação foi influenciada por ele”, explica Hormindo Pereira de Souza Junior, professor da Faculdade de Educação (FaE) da UFMG que dedica grande parte de suas energias à investigação do postulado marxista.
De 18 a 21 de setembro, o Grupo de Estudos e Pesquisas Marx, Trabalho e Educação (GEPMTE), realiza seu 2º Simpósio Nacional Educação, Marxismo e Socialismo na FaE. Em conferências, mesas-redondas e grupos de trabalho, o evento promete pôr em discussão temas como o socialismo, as eleições no Brasil, o feminismo e as questões agrária e racial.
Segundo Hormindo, podemos pensar em uma espécie de princípio formativo do trabalho. “Para Marx, é através do trabalho que o homem transforma a natureza, coloca-a ao seu dispor e, nesse processo, transforma a si mesmo. A relação trabalho-educação pode contribuir para uma formação crítica e transformadora da realidade. Para Marx, educação e trabalho são contribuintes significativos do processo emancipatório." Por outro lado, acrescenta Hormindo, o pensamento do filósofo alemão não trata de sistemas de ensino, da pedagogia em sala de aula ou de especificidades da escola formal: o que lhe interessa é a formação ampla dos sujeitos. “O que importa para Marx é a centralidade fundamental que o trabalho tem no processo de formação crítica dos sujeitos: o seu papel no processo de emancipação.”
O professor alerta, no entanto, para o fato de que o pensamento de Marx não é acabado. “Por um lado, Marx vai evidenciar que a mediação com a qual o homem estabelece as suas relações com a natureza – ou seja, trabalho – é muito importante para a sua formação. Por outro, ele vai afirmar que o trabalho é algo que se constitui ao longo da história, que está sediado na transitoriedade da história. Nesse sentido, o pensamento de Marx precisa ser construído e constituído pelos sujeitos históricos de cada época”, destaca o professor, evidenciando nesse fato a importância de Marx para a nossa realidade, hoje. “Se Marx estabeleceu as diretrizes de seu pensamento ainda no século 19, elas foram estabelecidas de forma a podermos verificá-las por nossos olhares de hoje, nossos olhares de sujeitos do século 21 – o olhar de cada tempo. É com o nosso olhar, na medida de nossa situação histórica, que vamos verificar as particularidades da mediação que o trabalho de hoje, face às particularidades de hoje, realiza da relação que nós, homens, estabelecemos com a natureza. Para Marx, o trabalho é a principal instância mediadora da transformação crítica do ser ao longo da história”.
"A história não está pronta, acabada; nós ainda não chegamos ao último patamar que a humanidade tem condições de chegar. Para a insatisfação de alguns, seguimos sendo capazes de ir muito mais longe. E foi isso que Marx nos apontou lá no século 19, e que continua sendo perfeitamente válido: a história não acabou; pelo contrário, a história está em pleno movimento”, defende Hormindo.
Em entrevista à Rádio UFMG Educativa, o professor Hormindo Pereira também falou sobre a relação entre o pensamento de Marx e a educação: