O conceito de “acontecimento” é usado para dizer de ocorrências que causam verdadeiras rupturas nos fluxos ordinários da vida, deslocando as construções dominantes da realidade, de forma a reconfigurar a maneira como o passado é entendido e o futuro é imaginado. Nesse sentido, “acontecimentos” costumam ter duas vidas: a sua dimensão fenomênica, em que são vividos e sentidos por aqueles que deles participam, e também a sua existência simbólica, em que são transformados em discurso.

Não raro, essas duas “vidas” se sobrepõem no tempo, se retroalimentando. É o que ocorre com a atual pandemia, em que um universo quase inconcebível de interpretações vai sendo estabelecido e revisado a todo instante, enquanto o próprio acontecimento segue em curso. É com o intuito de conferir alguma ordem a essa pletora de reflexões que pesquisadores do Laboratório de Análise de Acontecimentos (GrisLab) da UFMG lançaram nesta quinta-feira, 20, o calhamaço Diário da quarentena: a pandemia de covid-19 como acontecimento, volume que organiza e reúne extensivamente as reflexões empreendidas pelos pesquisadores do laboratório sobre a atual pandemia.

No livro, 50 autores assinam mais de 130 textos que, organizados em capítulos-meses, vão tentando interpretar a (evolução da) pandemia em face de temas como as políticas regionais, a política nacional, a política sul-americana, a geopolítica mundial e a necropolítica brasileira; a desigualdade e a violência de gênero, a desigualdade e a violência racial e a desigualdade e a violência social; o genocídio negro, o genocídio de povos originários e o genocídio, se é que já se pode falar nesses termos, da população idosa brasileira.

Mais: os textos tratam da pandemia em face dos papéis desempenhados pela universidade pública, pela Igreja, pelos programas televisivos populares, pelos artistas e pelas celebridades no âmbito da pandemia; a busca pela vacina, as notícias falsas (fake news), o trabalho remoto e (a falta de) isolamento social, o meio ambiente, o capitalismo, a questão dos entregadores e da renda básica emergencial; o mundo esportivo, o mundo infantil, a questão da saúde mental, a questão da educação básica, a pseudociência e os falsos remédios; o sistema prisional, o SUS, a cultura “good vibes”, a impossibilidade do luto, as lives artísticas, o humor, o jornalismo – e, claro, as expectativas de futuro pós-pandemia.

O livro foi organizado por Vera França e Paula Simões, professoras do PPGCom, Terezinha Silva, professora da UFSC, Fabíola Souza, professora da Ufop, e Samuel Silveira, bolsista CNPq de apoio técnico ao Grupo de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade (Gris) do Departamento de Comunicação Social da UFMG, a que todos os organizadores são vinculados. Publicado pelo selo editorial do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social (PPGCom) da UFMG em formato e-book, o livro tem acesso gratuito.

“Nosso Diário veio sendo escrito e inscrito no dia a dia de nossa vivência da quarentena; seguiu, portanto, um encadeamento temporal, ao mesmo tempo que procurava traduzir e compreender nossa experiência, como coletividade brasileira, da pandemia”, explicam os organizadores. “Nossas análises cotidianas constituíram narrativas emergentes, na tentativa de entender e dar sentido ao acontecimento. A edição de nosso Diário, neste momento, não chega a ser uma narrativa acabada – pois a pandemia ainda não acabou, e o futuro ainda é incerto – porém, tenta olhar para o que passou, ao longo desses seis meses, e projetar o que virá”.

Onten, para o lançamento do livro, o PPGCom realizou uma mesa de debates, que contou com a participação de Isabel Babo, professora da Universidade Lusófona do Porto que assina a apresentação do livro, e de André de Macedo Duarte, professor da UFPR. Vera França, professora do PPGCom, fez a mediação da mesa, que contou, em sua abertura, com a participação dos professores da casa Carlos D’Andrea e Paula Simões.

E-book: Diário da quarentena: a pandemia de covid-19 como acontecimento
Organizadores: Vera França, Paula Simões, Terezinha Silva, Fabíola Souza e Samuel Silveira
Editora: PPGCom/UFMG
492 páginas / acesso gratuito no site