Macaé Evaristo exalta presença negra na universidade e defende diversidade epistemológica
Na conferência de abertura do Novembro Negro da UFMG, ministra resgatou as várias lutas travadas no âmbito dos Direitos Humanos
“Muitas vezes, as pessoas pensam que, em uma Universidade como a UFMG, a luta antirracista se materializa nas cotas e na entrada de estudantes negros. Isso, sem sombra de dúvida, é muito importante. Porém, o necessário é que a luta antirracista seja feita na universidade também do ponto de vista epistemológico e por meio da priorização de temas e pautas essenciais para a emancipação dos povos negros e indígenas. Precisamos de um ambiente em que todos os nossos conhecimentos [ou seja, não apenas os que foram e são gerados pela cultura branca de lastro europeu, mas também os gerados pelas culturas negra e indígena, de lastro não ocidental] possam produzir confluência e garantir o fortalecimento da nossa democracia e dignidade para todo o conjunto da nossa população. O nosso desejo é de um povo que, em sua pluralidade, tenha os seus direitos respeitados, tenha a sua humanidade respeitada.”
O parágrafo acima é uma citação quase direta de trecho da conferência que a ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo, fez na UFMG na tarde desta segunda-feira, 4, no auditório da Reitoria, na abertura do Novembro Negro na UFMG. Em sua fala, Macaé lembrou que, “contra todos aqueles que apostavam que a universidade brasileira ia perder qualidade com a nossa presença [a maior presença de pardos e negros gerada pela política nacional de cotas], aqui está a UFMG para demonstrar que nós seguimos cada vez mais pujantes, cada vez mais fazendo jus à ideia de universidade como pluralidade”, disse, ao tempo em que clamava por uma universidade mais diversa também epistemologicamente. “Aqui estamos para reafirmar que o nosso maior potencial é a nossa pluralidade”, disse, tendo em vista a composição antropológica, social e cultural do Brasil e de seu povo.
Esta foi a primeira vez que Macaé participou de um evento institucional da UFMG como ministra. Mestre e doutoranda em educação na Universidade, a professora e assistente social assumiu o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) do governo Lula apenas no fim de setembro último.
Ao recebê-la para a conferência, a reitora Sandra Regina Goulart Almeida lembrou que, na UFMG, a luta antirracista precisa ser travada todos os dias – “seja pela importância mesma da temática, seja pelo fato de ainda vivermos tanto retrocesso em nosso país, como os vividos nos últimos anos”, disse. “Para nós, é algo óbvio, mas para muitas pessoas não é, então é sempre importante reiterar: a pauta antirracista é imprescindível para que possamos construir uma universidade e uma nação cada vez mais justa e mais equânime”, defendeu.
Na mesa da conferência, Macaé Evaristo estava acompanhada da própria reitora Sandra Goulart, do vice-reitor Alessandro Fernandes Moreira e da pró-reitora de Assuntos Estudantis, Licínia Maria Correa. No fim da conferência, a prima da ministra, a escritora Conceição Evaristo, foi "intimada" ao palco para, de improviso, recitar um de seus poemas que dialoga com o tema da conferência. Em seguida, a pró-reitora Licínia fez uma breve fala sobre a questão racial da perspectiva dos assuntos estudantis na Universidade.
‘Que república é essa?’
Nome proeminente da luta antirracista brasileira, Macaé Evaristo nasceu em São Gonçalo do Pará, em 1965, e fez carreira no campo da educação. Entre outros cargos e atuações, foi secretária de Educação de Minas Gerais e de Belo Horizonte, exerceu mandatos de vereadora e deputada estadual e integrou o grupo de trabalho da educação da equipe de transição do governo Lula. Antes, no governo Dilma Rousseff, já havia sido titular da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi) do Ministério da Educação (MEC) e coordenado programas relacionados ao ingresso de estudantes de escola pública, negros e indígenas no ensino superior. Em sua conferência, Macaé lembrou da importância da criação da Secadi em 2004, durante o primeiro governo Lula, para o avanço no trabalho de mitigação das disparidades de acesso à educação no Brasil.
Entre outros subtemas, ela também falou sobre seu desejo, como ministra, de fazer com que o debate sobre os Direitos Humanos, em sentido amplo, chegue ao dia a dia das pessoas comuns, de modo a mitigar toda a desinformação que paira sobre o tema na sociedade brasileira. Nessa seara, Macaé tratou, por exemplo, do tão importante direito à terra, fazendo lembrar a questão dos territórios quilombolas e do mais básico direito à água – tema particularmente caro à população mineira, em face dos grandes desastres ambientais causados por mineradoras no estado.
Macaé lembrou particularmente a questão dos indígenas Krenak, que, em razão do desastre ambiental causado pela mineração da Samarco em Mariana, em 2005, se viram privados das águas do rio Doce, em torno da qual viviam e com a qual mantinham e mantém uma relação realmente espiritual, e não apenas de subsistência.
Além de tratar da luta antirracista, Macaé – a exemplo de sua menção aos Krenak – abrangeu, em sua conferência, as diversas outras lutas que estão sob o guarda-chuva do seu ministério, como a dos direitos dos deficientes, das mulheres, dos idosos, das crianças, dos periféricos – e, por que não, do meio ambiente, lembrando o postulado filosófico do indígena Krenak Ailton, autor de uma reflexão que confere ‘humanidade’ ao planeta e à natureza. “A gente sabe que, durante muito tempo, a construção histórica e política não nos reconheceu, pessoas negras, em nossa humanidade própria. Hoje, no entanto, a gente luta não só por esse reconhecimento, mas também por reconhecer que esse planeta que a gente habita faz parte da nossa humanidade, de modo que a gente precisa pensar também em outras formas de nos relacionarmos com ele”, falou, cumprimentando os ambientalistas presentes no evento.
“Afinal, quem são os ‘humanos’ dos Direitos Humanos?”, perguntou Macaé, fazendo alusão à exclusão dos negros de boa parte dos direitos oferecidos aos brancos do país. “Mais: quem são as ‘humanas’?”, disse, lembrando uma cultura de direitos estabelecida na Europa com foco no branco europeu. Ao mesmo tempo, fazendo uma divertida referência a um hit do momento (o meme Que show da Xuxa é esse?), Macaé perguntou à plateia, em perspectiva retórica: “Que república é essa, que deixou de fora a maioria da população brasileira? Que democracia é essa?”, disse. “A estrutura racista produz comportamentos adoecidos na população negra, mas também na população branca, que acaba tendo uma percepção superestimada do seu valor e de sua produção de conhecimento”, demarcou.
Desconfiar da 'democracia racial'
Um ponto alto da conferência foi o momento em que a ministra destacou o papel fundamental que o movimento negro brasileiro teve para as conquistas que já foram alcançadas. Em particular, ela destacou que o movimento negro foi o responsável por ensinar o pensamento brasileiro a “desconfiar dessa ‘democracia racial’ que tanto tentaram impetrar em nosso país”. Situando a ideia de “democracia racial” como um mito criado para pacificar e manter as desigualdades do país fingindo solucioná-las, ela disse: “O movimento negro nos deu elementos, estratégias e estrutura para fazer frente a esse debate e para nos constituir num campo de luta importante dentro e fora do país, um campo de luta capaz de desconstruir essa ideia de democracia racial. Isso fez com que a gente pudesse produzir no Brasil uma série de mudança em nossas estruturas. Hoje a gente luta não apenas pela mudança nas estruturas, mas por reparação, o que o nosso país ainda não fez”, falou.