Para escanteio: estudo que expõe precariedade da arbitragem brasileira vence prêmio nacional
Juízes de futebol sofrem violência e têm suas carreiras prejudicadas pela falta de profissionalização, mostra dissertação da UFMG
Quando o assunto é futebol, muito se fala dos jogadores, os protagonistas da cena. São eles que emergem das lembranças das grandes jogadas, dos gols mais bonitos e das finais mais emocionantes. Mas nesse espetáculo existe um outro personagem muito importante, mas que quase sempre é esquecido pelas narrativas esportivas: o árbitro.
O resgate da memória e das narrativas que envolvem a atuação desses profissionais foi o tema da dissertação de Gabriel Farias Alves Correia, uma das vencedoras do Prêmio Brasil de Dissertações sobre Futebol, promovido pela Secretaria Nacional de Futebol e Defesa dos Direitos do Torcedor (SNFDT) da Secretaria Especial do Esporte do Ministério da Cidadania.O prêmio foi disputado por 10 teses e 27 dissertações de programas de pós-graduação de 23 instituições de ensino superior.
Defendida no ano passado no Centro de Pós-graduação e Pesquisas em Administração da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG (Face), a dissertação Uma grande solidão em meio à multidão: histórias e memórias da arbitragem de futebol de Minas Gerais resgata as histórias de árbitros brasileiros que atuaram no país e no exterior entre 1950 e 2010.
Para conhecer a história desses profissionais, Gabriel entrevistou 21 árbitros, usando a metodologia chamada “bola de neve” – um árbitro, depois de entrevistado, indicava um outro para a próxima entrevista. Os contatos dos árbitros foram cedidos pelo Sindicato dos Árbitros de Minas Gerais, e, depois das conversas, o conteúdo delas foi transcrito de forma a reunir os trechos relacionados. "A intenção era agrupar as conversas em subtemas como o início da carreira daquele profissional no futebol amador, o caminho que ele percorreu no futebol profissional no Brasil e no exterior e, finalmente, como se deu o fim da sua carreira”, explica o pesquisador.
Arbitragem é 'bico'
Gabriel Correia conta que a pesquisa evidenciou alguns aspectos que são comuns na vida dos árbitros no país. O primeiro deles é a falta de profissionalização que rege a carreira dos árbitros. “Apesar de haver um sindicato nacional, os juízes de futebol não são considerados profissionais, como ocorre com jogadores, técnicos, médicos e fisioterapeutas. A arbitragem é considerada um ‘bico’, visto que todos que atuam no Brasil devem, obrigatoriamente, possuir um emprego formal para também atuarem como árbitros”, explica.
Assim, diz o pesquisador, o árbitro acaba se tornando um trabalhador precarizado, pois precisa enfrentar jornadas duplas. “A obrigatoriedade de ter outro emprego faz o árbitro conciliar uma jornada em um emprego que não tem nada a ver com o futebol com os treinos físicos, técnicos e os jogos, o que é muito desgastante.”. Correia acrescenta que os árbitros não têm direitos trabalhistas, como 13º salário ou férias remuneradas. “Até a preparação física eles precisam fazer por conta própria. É como se existisse um trabalho amador dentro do esporte profissional”, diz Gabriel Correia.
Outro discurso evidenciado nas entrevistas diz respeito ao relacionamento entre os árbitros. Correia explica que todos os entrevistados disseram que há muita disputa entre eles, uma vez que o pagamento é feito por jogo. “Para o árbitro, é interessante apitar o maior número de jogos possível, pois ele recebe por partida. Dessa forma, há muita disputa entre eles, e alguns árbitros afirmam que os sorteios que decidem quem vai apitar determinados jogos costumam ser injustos e, até mesmo, fraudados." Na avaliação do pesquisador, isso acaba prejudicando a organização e a luta por direitos da categoria.
“Não existe uma regra que defina quantos jogos cada um vai apitar por mês, então os árbitros vivem uma relação de subserviência com as federações”, diz Gabriel Correia, acrescentando que, enquanto a Federação Internacional de Futebol Associado (Fifa) trata os árbitros de forma profissional, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e as federações estaduais do Brasil não veem a categoria dessa forma. Como consequência, as avaliações e escolhas dos árbitros passam por critérios subjetivos e políticos.
“Um dos entrevistados, que era árbitro no topo da carreira, já tendo apitado até Copa do Mundo, relatou que costumava trabalhar em 60 jogos por ano. Depois que virou presidente da associação de árbitros e começou a se indispor com as federações, ele passou a apitar apenas 15 jogos. Esse tipo de punição ocorre porque os árbitros são o lado mais fraco dessa relação”, explica o pesquisador.
O terceiro fato observado nas 21 entrevistas está relacionado à violência sofrida pelos juízes de futebol. Segundo Correia, os árbitros são hostilizados por jogadores e torcedores. “Isso é muito comum principalmente nas categorias amadoras ou de base. Há relatos, inclusive, de árbitro que sofreu violência com arma de fogo. Quando pensamos que isso ocorreu no ambiente de trabalho, fica ainda mais evidente como a categoria é desamparada”, diz.
Ter voz para conquistar direitos
Segundo Gabriel Farias Alves Correia, atribuir maior protagonismo aos juízes de futebol possibilita que o movimento de profissionalização nessa área seja colocado em evidência. Dados de 2019 expostos na dissertação mostram que um árbitro Fifa (topo da carreira de arbitragem) ganha cerca de R$ 4 mil por um jogo do Campeonato Brasileiro da Série A. Se apitar uma partida das séries B, C ou D, ele ganhará R$ 3,1 mil, R$ 2,3 mil e R$ 2,2 mil, respectivamente. Um juiz da CBF, topo da carreira nacional, embolsa cerca de R$ 2,9 mil por jogo, na Série A, e R$ 1 mil por partida da Série B.
“Fora do país, já existe arbitragem profissional. Na Inglaterra, por exemplo, uma associação independente é responsável por indicar quem arbitra qual partida, o que inviabiliza o jogo de influências e a indicação política. Além disso, eles recebem um salário, independentemente do número de jogos em que atuam. Isso é tudo com o que os árbitros brasileiros sonham, mas eles são descrentes quanto à real possibilidade de mudança”, afirma Correia.
Mulheres
Em relação à arbitragem feminina, as desigualdades ficam ainda mais evidentes. Entre os 21 árbitros entrevistados na pesquisa, três são mulheres. Elas recebem o mesmo valor por jogo apitado, porém são escaladas em menos partidas. “As mulheres ficam mais ainda em segundo plano. Elas relataram muitos casos de machismo e disseram que, em jogos importantes, são escaladas apenas aquelas consideradas ‘mais bonitas’. Se há um longo caminho para a arbitragem percorrer, esse caminho é ainda mais tortuoso quando se trata das mulheres que apitam”, conclui Gabriel Correia.
Dissertação: Uma grande solidão em meio à multidão: histórias e memórias da arbitragem de futebol de Minas Gerais
Autor: Gabriel Farias Alves Correia
Orientador: Alexandre de Pádua Carrieri
Defendida no Centro de Pós-graduação e Pesquisas em Administração da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG (Face) e vencedora do Prêmio Brasil de Dissertações sobre Futebol, promovido pela Secretaria Nacional de Futebol e Defesa dos Direitos do Torcedor (SNFDT), da Secretaria Especial do Esporte do Ministério da Cidadania