Pesquisa e Inovação

Pesquisa revela, por meio da psicanálise, 'construção da vida escrita' de Kafka

Tese da Faculdade de Letras mostra que a curta vida do autor foi marcada pela sensação de que não podia contar com seu corpo

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Kafka e  Felice Bauer, sua noiva, no verão de 1917 Wagenbach / Catálogo da exposição Franz Kafka 1883-1924

No primeiro semestre deste ano, foi defendida na Faculdade de Letras (Fale) a tese Kafka e a busca de sustentação: um corpo a se escrever. No trabalho, a psicanalista Bárbara Guatimosim parte de autores que abordam o corpo na literatura (Adorno, Barthes, Blanchot, Deleuze & Guattari, Foucault, Freud, Lacan, entre outros) para revelar, por meio de método psicanalítico, a “construção da vida escrita” do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924) – e o faz sem procurar diferenças entre seus textos mais ficcionais, como os romances, e suas cartas e diários. Ao contrário, Bárbara tenta conferir à obra de Kafka “valor literário e testemunhal indistinto”, até por entender que muito do que ele escrevia em seus diários funcionava como um rascunho para aquilo que, ­posteriormente, ele estabeleceria em termos literários. Seu trabalho foi abordado na edição 2026 do Boletim UFMG.

Ao investigar esse material, a psicanalista concluiu que o escritor viveu toda a sua curta vida atravessado pela hipocondríaca sensação de que seu corpo “não respondia à altura suas ambições” e que, portanto, não podia contar com ele. Assim, defende a pesquisadora, “toda sua vida escrita foi dedicada a dar tratamento a uma falta de lugar, de corpo, de chão” que o oprimia; dedicada a lidar com o embate “sem trégua entre a potência vital de um desejo intenso e o padecer de um grande sofrimento”, o sofrimento de possuir um corpo em seu entender insuficiente, frágil, suscetível ao adoecimento: um corpo incapaz de sustentá-lo a contento.

Corpo feito de linguagem
A autora aborda, no primeiro capítulo, essa insatisfação de Kafka com o próprio corpo e investiga as estratégias que ele utiliza “na busca de suporte e sustentação de um corpo a se escrever” – notadamente, a constante operação de metamorfose. “Vemos que a curta vida de Kafka é não só dedicada à literatura propriamente dita, mas é uma vida de um corpo que, de diversas maneiras, não cessa de se escrever”, afirma a pesquisadora, aproximando as ideias de corpo e corpus. Na sequência, ela trata da função das cartas e das fotos na vida e na obra do escritor e de como ele “tenta enlaçar e fazer corpo com suas eleitas [namoradas] a partir do vínculo epistolar”. Nessa parte, a ­autora aborda a busca desesperada de Kafka pelo casamento, “sempre torturado por desejos sexuais, real pulsional que ele nunca negou”.

Bárbara retorna, no terceiro capítulo, às dificuldades que Kafka enfrenta por se sentir “habitando um corpo que lhe escapa e com o qual não pode contar”. Segundo ela relata na tese, o escritor “sofre de hipocondria desde a juventude e, depois de desejar a morte, sem coragem para o suicídio, contrai tuberculose aos 34 anos, ao fim de suas tentativas desesperadas de casar-se”. A doença, apesar de surgir como vaticínio mortal, “chega também como uma redenção, alívio para o peso dos fracassos do homem que queria e não chegou a ser”, diz a pesquisadora. “A doença é abraçada por Kafka como libertação das exigências do corpo e solução final para seus impasses na vida e que, inesperadamente, tem, como uma espécie de efeito colateral, a consequência de abrir-lhe a via do encontro com uma mulher.” Nas considerações finais, a autora trata dos impactos da escrita de Kafka nos corpos de seus leitores e no corpo da cultura.

A tese foi orientada por Ram Mandil, professor da Fale cuja formação está sediada na imbricação entre literatura, filosofia e medicina (psiquiatria e psicanálise). Ram já havia orientado Bárbara em seu mestrado, no qual a pesquisadora defendeu a dissertação Kafka e a escrita destinada ao pai: de uma carta à letra, que se relaciona diretamente com o terceiro capítulo da tese que ora vem a público. Na dissertação, Bárbara parte da famosa carta escrita (e nunca entregue) por Kafka a seu pai para investigar o que seria “a função da escritura e da letra em uma vida que, em suas palavras [as de Kafka], confunde-se com a literatura, na busca de uma saída”.

TeseKafka e a busca de sustentação: um corpo a se escrever
Autora: Bárbara Maria Brandão Guatimosim
Orientador: Ram Avraham Mandil
Defesa em 13 de abril de 2018, no Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários

Ewerton Martins Ribeiro / Boletim 2026