População LGBTQI relata discriminação, depressão e solidão na pandemia
UFMG e UFRJ divulgaram primeiros resultados de inquérito nacional sobre as implicações da covid-19 nesse grupo
Durante a pandemia de covid-19, 36% das pessoas da comunidade LGBTQI relataram ter sido vítimas de ao menos um episódio semanal de discriminação, boa parte ocorrida em serviços de saúde ou praticada por profissionais da área. No período da crise sanitária, que força as pessoas a restringir encontros presenciais, o percentual de gays, lésbicas, travestis e transexuais que disseram se sentir sempre sozinhos chegou a 18,9%. O consumo de álcool e de cigarro aumentou 17% e 6%, respectivamente, nessa comunidade, enquanto os relatos de depressão chegam a ser duas vezes mais frequentes que os do restante da população.
Esses dados, que compõem o Inquérito Nacional de Saúde LGBTQI, acabam de ser divulgados pela Faculdade de Medicina da UFMG e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A pesquisa reúne informações coletadas durante a pandemia de covid-19 – até 30 de novembro do ano passado. O questionário foi respondido por 976 pessoas da população LGBTQI.
O objetivo do Inquérito é identificar os fatores que impactam essa comunidade, a fim de melhorar o atendimento dos serviços de saúde. Foram coletadas informações sociodemográficas, de sexualidade, violência e discriminação, além de condições e comportamentos em saúde relacionados ou não à covid-19.
A pesquisa foi demandada por uma clínica da família na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. “No inquérito, foram descritos episódios de discriminação em ambientes como restaurantes e serviços de saúde. Houve relatos de pessoas que se sentiram tratadas de forma descortês, percebidas como menos inteligentes e ameaçadoras. A sociedade brasileira ainda é muito discriminadora, principalmente com essa população, o que gera um impacto considerável nas condições de saúde mental”, afirma a coordenadora do estudo e professora do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da UFMG, Juliana Torres.
Esse efeito pode ser notado, por exemplo, na prevalência de diagnósticos médicos de depressão. Enquanto na população brasileira em geral esse quadro afeta 10% dos adultos (segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde, feita pelo IBGE em 2019), o Inquérito Nacional de Saúde LGBTQI encontrou 25% de relatos de depressão nesse grupo.
Juliana Torres avalia que essa informação deve balizar políticas de saúde específicas para esse grupo populacional. “O dado é impressionante e mostra a grande carga que a depressão exerce nas pessoas LGBTQI. Ele é importante para se fazer o rastreio de saúde mental dessa população, identificar pessoas que estão sob maior risco, aconselhar a melhor terapia e evitar episódios de suicídio”, explica.
Covid-19 e comportamento preventivo
Os primeiros dados obtidos subsidiarão propostas de mudanças comportamentais da população LGBTQI em relação à pandemia de covid-19. Outras frentes também estão em curso, com dados sobre vulnerabilidade em saúde física e mental.
O inquérito identificou maior consumo de álcool e cigarro entre o público estudado do que na população em geral. Houve, durante a pandemia, aumento no consumo de bebida por 17% das pessoas, enquanto o de cigarro cresceu 6%. “Vimos que esses dois grupos, os que bebem e os que fumam, são os que tendem a aderir menos às estratégias de prevenção à covid-19, como uso de máscara facial e medidas de distanciamento social”, afirma Juliana.
A equipe está começando a analisar os resultados e planeja divulgá-los em artigos científicos e utilizá-los em projetos de extensão. Já existem sugestões de intervenções direcionadas à saúde da população LGBTQI. “É importante incluir perguntas sobre identidade de gênero e orientação afetiva nas linhas de cuidado do SUS, principalmente em saúde mental”, afirma a professora da Faculdade de Medicina. “Isso é necessário principalmente em razão do grande número de episódios de discriminação. Precisamos identificar com precisão o perfil dessas pessoas para oferecer o melhor cuidado possível”, completa Juliana Torres.
O estudo inclui respostas de todas as regiões do Brasil, e a maior adesão foi registrada entre pessoas que moram no Sudeste, com alta escolaridade e acesso a planos de saúde. Mesmo nesse universo, no entanto, a fragilidade da população LGBQTI frente à pandemia é elevada – de acordo com o estudo, a taxa de vulnerabilidade nesse grupo é de 0,4 (valor igual ou superior a esse patamar é considerado alto). “Além dos fatores de vulnerabilidade observados na população geral (menor escolaridade, raça não branca, desemprego e inclusão no grupo que recebia auxílio emergencial), notamos que as pessoas mais vulneráveis são as transexuais e não binárias”, acrescenta a pesquisadora.