'Precisamos resgatar a missão humanista dos professores', defende António Nóvoa
Reitor honorário da Universidade de Lisboa proferiu a conferência que marcou a instalação de cátedra do IEAT dedicada à educação básica
"Nada começa do nada. Se algumas mudanças são possíveis, são viáveis no determinado momento, é porque há um caminho. Na sociedade, essa transformação depende das condições institucionais e da vontade coletiva e individual". Foi com essas palavras que António Nóvoa, reitor honorário da Universidade de Lisboa, em Portugal, abriu sua fala na inauguração da Cátedra Fundep Magda Soares de Educação Básica, promovida pelo Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (IEAT), em parceria com a Fundep, a Fundação de Apoio da UFMG. A cerimônia ocorreu na manhã desta quarta-feira, 29, no auditório da Reitoria da UFMG.
Em sua fala inicial, Nóvoa apontou que a transformação é a vocação dos institutos avançados ou transdisciplinares. "O melhor acontece sempre nos espaços transdisciplinares. Lembro-me de uma conversa que tive com o então reitor da California Institute of Technology, que tem mais prêmios Nobel por metro quadrado, e eu lhe perguntava qual era o segredo. Ele dizia: 'Tudo o que é importante neste instituto acontece no momento da cantina, quando nos juntamos para conversar uns com os outros. Todas nossas ideias surgem nesse momento, quando conversamos com pessoas de áreas diferentes'", contou o catedrático convidado para ministrar a primeira cátedra de longa duração do IEAT.
De mãos dadas
A professora Patrícia Kauark Leite, diretora do IEAT, informou que a cátedra teve nove meses de planejamento e idealização. Fruto de uma utopia coletiva, segundo Patrícia, a cátedra marca os 50 anos da Fundep e os 25 do IEAT. Sobre o tema, a diretora observou que educação Básica não é apenas transdisciplinar por excelência, mas um tema do futuro.
A diretora da Faculdade de Educação da UFMG, Andréa Moreno, elencou três razões para celebrar o momento: a inauguração da Cátedra, a homenagem à professora Magda Soares e a presença de António Nóvoa na Universidade. "Nosso sonho de avançar na qualidade da educação básica de mãos dadas será um sonho e uma prática compartilhados com o António", declarou a professora.
Jaime Ramírez, diretor da Fundep, reforçou o dever das universidades públicas de abordar a Educação Básica e enfatizou que o Brasil, "apesar de ser um país de avanços na autossuficiência, ainda não consegue resolver questões educacionais de maneira transdisciplinar."
Gilcinei Carvalho, diretor do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), grupo constituído sob os ideais de Magda Soares, relembrou uma das frases da professora ao apresentar António Nóvoa: "O processo de gestação de ideias se faz na coletividade e no soar das vozes." Para Carvalho, a educação básica motivou e constituiu os esforços da caminhada de Magda, pessoa de "espírito agregador e do debate coletivo."
Educação é direito de todos
A reitora Sandra Regina Goulart Almeida indicou duas grandes inspirações para a Cátedra Magda Soares. A primeira foi a palestra de António Nóvoa durante a Conferência Mundial de Educação Superior em Barcelona, na Espanha, em 2022. "O professor fez uma abertura inspiradora. Ele disse que a educação não pode ser voltada ao lucro, ela é um direito de todos e todas. Pode parecer óbvio, mas é importante ser reiterado", enfatizou a reitora.
O segundo momento foi no seminário da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), no Rio de Janeiro, em 2023, quando Nóvoa apresentou um projeto de formação de professores articulado com a UFRJ. "Na época, eu perguntei se ele toparia fazer algo parecido com as universidades de Minas Gerais e ele disse: 'Estou a disposição'", contou Sandra. A iniciativa foi realizada no estado por meio do Fórum das Instituições Públicas de Ensino Superior do Estado de Minas Gerais (Foripes).
O professor Nóvoa, em dado momento de sua fala, recorreu a Ítalo Calvino e suas duas maneiras de não sofrer, que são aceitar o inferno e tornar-se parte dele até deixar de percebê-lo, ou procurar e reconhecê-lo. "Este segundo é o caminho que nos aponta Magda Soares, patrona desta Cátedra. De um lado, temos o inconformismo com a realidade social, que busca a expressão na crítica, e, de outro, o compromisso com a prática social que obriga a ação sobre essa mesma realidade que se critica", observou Nóvoa.
Um século de disputas
Durante 100 anos, entre meados dos séculos 19 e 20, a formação de professores esteve, em âmbito mundial, a cargo de escolas normais ou institutos semelhantes. As universidades envolveram-se muito pouco com a criação dos grandes sistemas públicos de educação. As normalistas foram portadoras de uma nova presença e de uma nova voz da profissão, em um tempo no qual a escola se tornava obrigatória em âmbito global. "Foi uma presença tão marcante que guardamos muitas imagens deste tempo, no qual o acesso ao professorado representava uma oportunidade única de mobilidade social, sobretudo para as mulheres", afirmou Nóvoa.
Segundo o educador, a ligação íntima de formação e profissão representa o aspecto mais positivo das escolas normais. A cultura profissional docente era reforçada pelo fato de os formadores de professores serem da educação básica. Mas o aspecto mais negativo desse período, para o professor, é o afastamento da formação de professores da pesquisa e do conhecimento científico, em que prevalece uma dimensão técnica e instrumental. "As escolas normais tornaram-se rotineiras e, pouco a pouco, foram substituídas por universidades e outras instituições de ensino superior. O movimento, conhecido por Universitarização, foi um passo importantíssimo na história da profissão docente em relação à proximidade com o mundo acadêmico e com os outros campos científicos. Porém, no início do século 21, começaram a levantar críticas e reservas ao trabalho realizado nas universidades, argumentando que elas tinham capturado a formação de professores para os seus próprios fins", descreveu Nóvoa.
O problema atual, segundo o reitor honorário, reside no fato de a universidade ter se apropriado da formação de professores, mas sem nunca lhe conceder um estatuto ou lhe dar uma centralidade dentro da universidade para além das competências das faculdades de educação ou das licenciaturas.
"A escola pública está numa encruzilhada. Não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Estamos numa encruzilhada face aos devaneios das tecnologias e do digital, face à privatização selvagem que vem tomando conta da educação no mundo, sobretudo no Brasil. Os professores e a formação de professores estão numa encruzilhada face à desvalorização da profissão e das suas condições de trabalho, face às ilusões de que os professores serão, mais cedo ou mais tarde, substituídos pelas plataformas digitais. Ou até a ideia, profundamente errada, de que os professores podem ser formados em cursinhos rápidos, de preferência a distância e sem muito trabalho", diagnosticou.
"Sabemos quais são os problemas e os caminhos para resolvê-los. Precisamos buscar inspiração em lutas históricas dos professores e dos seus movimentos e acionar autores como Paulo Freire, Darcy Ribeiro e Magda Soares. O passo que será dado pela UFMG e pelas instituições mineiras de ensino superior ao chamarem a atenção para a formação de professores como uma das missões centrais da universidade é histórico. Há passos que valem uma história e valem o futuro. Este é um deles", declarou Nóvoa.
Sobre as maneiras de resolver os problemas na educação, Nóvoa disse que faria duas afirmações óbvias: "Primeiro, é preciso construir um espaço comum dentro da universidade para tratar da formação de professores, e ele tem de ser resultado de grande legitimidade e de poder institucional, na medida em que o assunto é um problema de toda a universidade. Segundo, é preciso construir um espaço comum entre a universidade e as redes escolares, não apenas de coordenação e articulação, mas um espaço comum constituído por representantes de uns e de outros, uma espécie de um terceiro espaço, como em A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa."
Formação mútua e cooperada
"O que nos une é a valorização da escola pública por meio, primeiro, da valorização do seu conhecimento próprio, o que implica muito trabalho, pesquisa, publicações, não apenas sobre os professores, mas, acima de tudo, dos próprios professores. Segundo, da valorização dos professores da educação básica como formadores de pleno direito, não apenas como ajudantes ou cooperantes dos professores universitários. Precisamos instaurar processos de formação mútua e cooperada, de articulação com as secretarias de educação estaduais e municipais. E o que nos une é, também, a valorização dos espaços comuns dentro e fora das universidades, com órgãos próprios de direção de professores universitários e de educação básica."
Para Nóvoa, o tempo é decisivo quanto ao futuro da escola e, sobretudo, da escola pública. "É pela escola pública que se pode ganhar o país, mas é também pela ausência ou degradação da escola pública que se pode perder um país", apontou o professor. A escola é, mais do que nunca, segundo o educador, a primeira fronteira do combate às desigualdades, racismo, xenofobia, violência de gênero, LGBTfobia e todas as formas de discriminação que degradam a sociedade. E para defender a escola de quem sonha com o fim dela, Nóvoa recorreu a Magda Soares no final do seu memorial, depois de ter confessado que passou uma parte da sua vida a criticar a escola e o seu papel na reprodução social. "Diz a última página do seu memorial: 'Mas, hoje, pergunto a quem interessa a desvalorização da escola? A quem interessa minimizar a educação escolar, fazendo-a perder seu papel e sua força nos processos de transformação social? Hoje, recuperamos a crença no poder que tem a escola na luta contra a discriminação social e na libertação das camadas populares.'"
Combate sem trégua
Ao mencionar os dois terços da humanidade que vivem sob ditaduras, Nóvoa apontou que educadores têm um combate sem trégua pela frente para defender todos os direitos humanos, já que a educação é a abertura para eles. "Por isso é tão importante resgatar a grande missão humanista dos professores. Não podem ser só declarações retóricas. Precisamos de gestos e decisões concretas que reforcem os professores, que lhes concedam um estatuto de maior elevação e de maior dignidade", afirmou o catedrático.
António Nóvoa apontou boas condições institucionais, sobretudo na UFMG e em várias outras universidades mineiras, para um diálogo possível. "Parece haver um fervilhar de vontades individuais e coletivas, condições e vontade ao mesmo tempo, e universidades capazes de assumir a sua responsabilidade pública, de contribuírem para as políticas públicas e para a construção de uma esfera pública de ação", observou em sua fala.
A responsabilidade pública, segundo Nóvoa, existe porque a universidade não se destina a reproduzir a sociedade, mas a construir outras possibilidades, outros caminhos e futuros. Ao finalizar sua fala, o professor voltou a afirmar que nada começa do nada. "Por vezes, é preciso a coragem de recomeçar com ousadia, vigor e liberdade, liberdade, sempre liberdade. Mas recordando que não há liberdade nem antes nem depois, só durante, no momento da ação. Não temos a obrigação de vencer, mas temos a obrigação de tentar, como nos diz Darcy, como nos diz Magda Soares", concluiu.