Julgamento e condenação dos réus no caso da boate Kiss são discutidos no programa Conexões
‘A grande questão é saber se um caso como esse se equipara ou não ao dolo eventual porque é uma situação muito mais difusa’, observa o professor de Direito Penal da UFMG Túlio Vianna
O incêndio da Boate Kiss, em Santa Maria, no interior do Rio Grande do Sul, ocorreu em janeiro de 2013, deixando 242 mortos e centenas de feridos. O fogo foi causado pelo uso impróprio de artefatos pirotécnicos em local fechado durante o show da banda Gurizada Fandangueira, na segunda maior tragédia da história do Brasil em número de vítimas causadas em um incêndio. Quase 9 anos depois, o caso que gerou repercussão internacional e incentivou a revisão da legislação nacional sobre a segurança e a vistoria de casas noturnas foi a julgamento. Após 10 dias de trabalho, o Tribunal do Júri do Foro Central de Porto Alegre condenou quatro réus acusados pelo incêndio da Boate Kiss, na última sexta-feira, dia 10.
Os sócios do estabelecimento, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, o vocalista do grupo Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus, e o auxiliar da banda, Luciano Bonilha, foram condenados por homicídio simples com dolo eventual e receberam penas entre 18 e 22 anos. Respaldados por um habeas corpus preventivo, os réus não foram presos logo após o julgamento, mas se entregaram à Justiça e foram encaminhados ao sistema prisional após a derrubada do instrumento processual pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, anunciada nessa terça-feira, 14. Para analisar o julgamento e o impacto das condenações, o programa Conexões dessa terça recebeu o advogado criminalista e professor de Direito Penal da UFMG, professor Túlio Vianna.
O convidado falou sobre a demora no processo, que é inevitavelmente longo nesses casos por exigir uma extensa e cuidadosa colheita de provas que seja adequada a esse tipo de julgamento. O professor explicou o que é o júri popular, formado por pessoas não necessariamente formadas em direito que se inscrevem para isso, acionado em casos de homicídio e tentativa de homicídio. Ele detalhou que o julgamento foi transferido para Porto Alegre porque um tribunal afastado do local dos fatos garante, em tese, uma maior isenção dos jurados, no sentido de que não possuem um pré-julgamento sobre o caso, como poderia ocorrer entre os moradores de Santa Maria.
Sobre a polêmica carta psicografada supostamente enviada por uma das vítimas da tragédia, apresentada pela defesa de um dos réus, o advogado defendeu que essa leitura não deveria ser permitida, considerando que o Brasil é um país laico e as garantias de defesa devem ter respaldo científico. Outra questão bastante marcante quanto ao julgamento que Vianna comentou é a do enquadramento do caso. “Se equiparou a figura de um crime culposo ao chamado dolo eventual. O código penal brasileiro traz a previsão do dolo eventual quando o réu assumiu o risco do resultado, só que isso pode significar coisas muito diferentes. A grande questão é saber se um caso como esse se equipara ou não ao dolo eventual, porque é uma situação muito mais difusa, a previsibilidade é muito mais difusa e principalmente a questão de assumir o risco’, refletiu o professor.
Em relação à pena como possível sinalização para que a sequência de erros que ocasionou a tragédia não se repita, o docente trouxe outro ponto de vista. “É muito mais uma questão de que as leis sejam cumpridas do que o medo da pena. O medo da pena é algo muito difuso. As pessoas que agem de forma negligente normalmente não acham que o resultado vai acontecer. Infelizmente, eu não acredito que vai servir de exemplo”, argumentou.
Ouça a entrevista completa no Soundcloud.
A entrevista do professor Túlio Vianna à Rádio UFMG Educativa foi concedida nessa terça, mas em momento anterior à derrubada do habeas corpus pelo presidente do STF, abrindo caminho para que a prisão dos réus fosse efetivada.
Produção: Carlos Ortega, sob orientação de Luiza Glória e Alessandra Dantas
Publicação: Enaile Almeida, sob orientação de Alessandra Dantas