Rubens Ricupero: 'restituição da esperança' é o caminho para a reumanização do país
Na palestra de abertura da Conferência Internacional das Humanidades, diplomata brasileiro convocou universidade a assumir protagonismo na reconquista intelectual do país
“Pela primeira vez na nossa história, temos um governo que se constituiu baseado numa plataforma de hostilidade aos direitos humanos e ao meio ambiente. Nesse sentido, o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal, o Ministério Público Federal, a imprensa, as organizações da sociedade civil precisam estar mobilizadas e atentas, porque não se trata mais de ‘business as usual’ [os negócios, tal como de costume], como se diz no inglês: o que estamos vivendo é algo diferente, algo de fato inédito em nossa história. Não podemos mais contar com o Executivo: ele deve ser visto como o que é, ou seja, um adversário dos direitos humanos e do meio ambiente.” Com o argumento acima como eixo, o jurista, historiador e diplomata brasileiro Rubens Ricupero, que foi ministro do Meio Ambiente e da Fazenda do governo de Itamar Franco, conduziu a palestra de abertura da 2ª Conferência Internacional das Humanidades, evento que a UFMG sedia até esta quarta-feira, dia 11, na Faculdade de Ciências Econômicas.
Na noite da segunda-feira, dia 9, Ricupero insistiu que, se da época de Itamar Franco em diante sempre tivemos como chefes de Estado “homens decentes, que desejavam – seja em maior ou menor grau – promover avanços nos campos dos direitos humanos e do meio ambiente”, agora “é preciso ter em mente que a própria natureza do desafio mudou”: o governo ora no poder é, em sua opinião, produto de um “movimento claramente anti-iluminista, antiluzes, cujos mestres são aqueles que foram os opositores da Revolução Francesa e do enciclopedismo”, e que tem líderes “imbuídos de um grande ressentimento contra a comunidade acadêmica, na medida em que ela os despreza intelectualmente”, disse, citando nominalmente o escritor Olavo de Carvalho.
“Há uma certa tendência de se subestimar a influência de Olavo de Carvalho e de seus seguidores no campo das ideias”, disse Ricupero, assim como de se adotar, em relação a ele, “uma atitude de simples menosprezo”, na medida da percepção de sua atuação como de “subfilosofia, ou de uma filosofia extra-acadêmica”. Contudo, defendeu o historiador, esse desprezo “pode não ser um bom remédio” para se enfrentar o seu movimento, já que ele “não é desorganizado, apenas de reação esporádica; na verdade, tem ampla base na sociedade, muito apoio de policiais militares, e tem uma grande penetração”. Esse movimento, continuou, constituído “fora e contra a universidade pública, apresenta características que são antípodas de tudo de que se falou aqui, nesta mesa de abertura: é um movimento antiluzes, anti-iluminismo, antirracionalista, anticientífico – não por acaso, vários de seus integrantes sustentam que a Terra é plana”, lembrou.
Em face desse cenário, Rubens Ricupero disse que “se impõe a todos nós, hoje, um certo exame de consciência” quanto à possibilidade de tal movimento ter vicejado em um espaço a que a universidade pública brasileira não se dedicou. “Talvez a universidade tenha se preocupado muito com a pesquisa, a formação de seus alunos, e não se tenha preocupado em se estender para fora dos seus muros. Talvez o papel que a universidade pública deveria ter na vida da comunidade não tenha sido desempenhado plenamente”, disse, retomando a ideia da torre de marfim. “Em alguma medida, esse movimento de ideias preencheu um vazio”, afirmou.
Como exemplo das consequências dessa falha da universidade, o historiador lembrou que hoje Olavo de Carvalho ministra cursos de filosofia pela internet para policiais militares de todo o Brasil, traduzindo filosofia “numa linguagem acessível a baixas patentes dessas polícias”, coisa que a universidade não faz. “Temos de nos indagar, portanto, até que ponto esse movimento de ideias floresceu em um espaço que a universidade pública não ocupou.”
Em sua palestra, o ex-ministro não apenas tratou do cenário atual; também propôs uma saída para a crise vivida no país, saída que passaria por uma “restituição da esperança”. “Falo de esperança não no sentido de uma virtude teológica, e, sim, no sentido de uma esperança secular, uma esperança que se confunde, no fundo, com a confiança de que o futuro será melhor que o presente e o passado. Nós perdemos essa esperança, e no fundo esperança é isso: confiar que o futuro nos reserva dias melhores”, disse. Para Ricupero, trata-se de uma restituição que “só pode vir da cultura, da filosofia, da universidade”: em alguma medida, ela “terá de vir do terreno das ideias”, disse ele, lembrando que o ano de 2022, que marca o fim do mandato do atual presidente, é também o ano em que será comemorado o bicentenário da independência brasileira.
A propósito dessa efeméride, o historiador lembrou que o centenário da independência brasileira, comemorado há quase cem anos, foi também o marco para o recrudescimento de uma mobilização progressista e intelectual no Brasil, apesar de na época ainda não haver uma universidade pública consolidada no país. “Hoje, a três anos do bicentenário da nossa independência, seria imperdoável se a universidade pública brasileira não assumisse, desta vez, ela mesma esse papel”, convocou. Para Ricupero, “as Humanidades são a única forma de enfrentar as desumanidades, que é o que nos ameaça hoje”, e essa reumanização da sociedade, “essa reumanização da vida humana tem de vir por meio de um debate que só pode começar no domínio das ideias, da cultura, das artes: o domínio das humanidades”.
Após a palestra, a TV UFMG entrevistou o jurista, confira: