[Artigo] Uma Universidade do e para o seu tempo
Reitora da UFMG analisa o legado da reforma de 1968 e os desafios que a instituição enfrenta
Já se disse, não sem alguma razão, que datas são marcos arbitrários, com os quais tentamos ordenar o fluxo do tempo. Dessa forma, 2018 é um ano marcado por importantes efemérides, que sinalizam momentos históricos para a humanidade, para o nosso país e para a nossa Instituição.
Comemoramos os 100 anos da Reforma Universitária de Córdoba, na Argentina, iniciada com um movimento estudantil que estabeleceu os marcos da educação superior na América Latina, inaugurando muitos dos temas que hoje ainda fazem parte de nossas pautas, entre eles, a autonomia universitária, a educação inclusiva, a liberdade de cátedra e a liberdade de expressão.
Celebramos os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que sinaliza a defesa de direitos imprescindíveis para se pensar as sociedades contemporâneas.
É também o ano em que se comemora os 30 anos da nossa Magna Carta, a Constituição de 1988, conhecida como a Constituição Cidadã, marco da redemocratização do país e do que viria a ser a concepção de uma nação mais respeitosa e mais inclusiva.
É, em especial, um importante marco histórico para a UFMG. Ao nomear uma data que ora comemoramos, imaginamos impor três limites ao tempo: a singularidade de uma origem, a clarividência do presente e o desenho de um futuro.
Assim, na singularidade da origem da nossa Instituição, encontramos o ano de 1968, tão paradigmático na história de nossa contemporaneidade – o ano que não terminou, nas palavras do escritor Zuenir Ventura –, quando o mundo, e o Brasil incluído, vive momentos de polarização e confronto, de tantas formas tão atual. É o ano da Primavera de Praga, da Guerra do Vietnã, do movimento de maio de 68 dos estudantes franceses e da noite das barricadas, da morte do estudante secundarista Edson Luís durante choque com a polícia militar, da prisão de 154 estudantes da Faculdade de Medicina da UFMG, da Sexta-feira Sangrenta e da Passeata dos Cem Mil no Rio de Janeiro, da prisão de líderes estudantis no 30º Congresso da UNE, no interior de São Paulo, do AI-5 – decreto do Presidente Costa e Silva que dá início ao período mais violento da ditadura militar no país – e de tantos outros eventos que hoje nos assombram.
É também o ano da edição, em 28 de novembro, da Lei da Reforma Universitária no Brasil (Lei 5.540/68), quando a UFMG e muitas outras universidades públicas no país estavam às voltas com uma reconfiguração de sua estrutura interna, que, no caso da UFMG, se revelaria decisiva, definidora do que nós hoje viemos a ser.
Articulava-se, assim, o desmembramento da Faculdade de Filosofia e a criação dos institutos e das diversas unidades acadêmicas: Fafich, FaE, Fale, ICEx, ICB, IGC e EBA. Eram também fundados os departamentos. Preparávamos para iniciar o nosso primeiro vestibular unificado para ingresso em todos os cursos. Ao mesmo tempo, inseríamos em nossa agenda o desenvolvimento da pesquisa, da pós-graduação e da extensão. Em muitos sentidos, redesenhava-se a nossa missão como hoje a concebemos.
Em certo sentido, cada unidade acadêmica corresponde a uma missão que a UFMG se propõe a cumprir perante a sociedade. O momento da criação de uma unidade corresponde ao tempo no qual a instituição toma consciência dessa missão, mobiliza sua comunidade e se prepara para cumprir essa tarefa que tem origem no passado, adentra no presente e avança no futuro.
Educação, ciência e tecnologia, que pensadas para muito além da sua dimensão da transmissão do conhecimento, e hoje muito expandidas nas ações desta Casa, tornam-se causa na justa medida em que se reconhecem a sua centralidade em um projeto de país soberano, justo e próspero e o seu estatuto de requisito insubstituível para a superação da desigualdade estrutural que faz persistir nosso status quo, injusto, desigual e eticamente inconcebível.
A clarividência do presente nos mostra que, pela via da educação, do desenvolvimento da ciência e da reflexão crítica, são construídos os elementos-chave socialmente compartilhados de nosso imaginário do futuro. A Universidade sempre esteve no centro de discussões, palco de reflexões sobre o ponto mais sensível de uma sociedade: sua reflexão crítica, seu método de análise científico, seu questionamento do mundo ao seu redor, seu pensamento, sua linguagem, sua consciência.
A UFMG hoje se destaca pela regularidade com que atende à demanda das comunidades interna e externa, com a oferta de cursos de graduação e pós-graduação de qualidade, como indicam os vários instrumentos de avaliação educacional. Seus programas de pós-graduação atingiram nível importante de excelência, tendo se tornado referência no país por sua qualidade e impacto acadêmico. Os vários grupos e laboratórios de pesquisa e inovação aqui ancorados são importante referência no Brasil. A esse elevado grau de eficácia, soma-se a amplitude do trabalho de extensão universitária que abriga milhares de alunos da própria instituição e da comunidade externa. Ressalte-se a inerente característica interdisciplinar da pesquisa e das ações aqui desenvolvidas, mantendo sempre a mirada crítica e questionadora que marca sua atuação – condição indispensável para o fazer acadêmico na contemporaneidade.
No desenho de um futuro que nos aguarda, buscamos inspiração nesse quase século de história em que a UFMG nunca escolheu ficar do lado fácil ou cômodo. Altivamente, sempre escolheu, e acredito que sempre escolherá, a educação de qualidade – como bem público e direito de todos –, as propostas mais inovadoras, a busca incansável do e pelo conhecimento, a reflexão crítica e inquietante e a aspiração de autonomia e liberdade – condições insubstituíveis para que a nossa missão faça sentido.
Poderia agora abordar nossos muitos planos e objetivos para os próximos anos. Poderia falar dos enormes desafios que têm sido colocados para nós, dirigentes de instituições públicas de ensino superior, na execução das propostas que traçamos e nossa incansável luta pela liberação de recursos. Tudo isso poderia ser feito detalhadamente, mas me parece secundário neste momento dado o contexto no qual estamos inseridos. Momento dúbio por nos colocar, de um lado, a satisfação, sempre aguardada, sempre desejada, de júbilo e de comemoração pelo legado desta Casa; por outro lado, de grande apreensão para todos que estamos à frente das universidades públicas e para todos nós que fazemos parte desta comunidade, da qual tanto nos orgulhamos.
Não poderia deixar de mencionar nossa preocupação com o momento delicado que vivemos. Momento de polarizações, intolerâncias, enfrentamentos, violências e de divulgação de inverdades sem lastro na realidade factual, das quais a própria UFMG tem sido vítima recorrente. É neste cenário que parece emergir das profundezas de um tempo, que deveria ficar no passado, práticas autoritárias, antidemocráticas, desidratadas da noção de justiça social e alicerçadas sobre os sentimentos de individualidade e efemeridade. Tempos difíceis que subtraem de nós a tolerância e mesmo a esperança e nos jogam no campo movediço da disputa desmedida, do desrespeito, da intolerância e da violência.
Para nós que pertencemos à UFMG, instituição que se ergue sobre os mais nobres pilares republicanos, é preciso, mais do que nunca, defender a liberdade de expressão, a laicidade, os valores éticos e democráticos e o Estado de Direito, como prevê a Constituição Cidadã de 1988.
Estamos atentos e engajados na defesa da universidade pública, da autonomia universitária, do investimento contínuo na educação, na saúde, na ciência e na tecnologia e na construção de políticas de Estado, sustentáveis e sustentadas, que preservem o importante legado histórico e científico do país construído pelas universidades públicas ao longo de tantos anos. Esse compromisso a UFMG não pode se furtar de abraçar.
Nesta data simbólica em que comemoramos a origem de várias unidades da UFMG, é importante destacarmos a história, o legado, a presença, a prontidão e a disponibilidade de ir ao encontro dos anseios do nosso Estado e do nosso País e para atuar por sua transformação por meio de uma educação de qualidade e relevante. E na expectativa por seu futuro, que por mais aberto que esteja às incertezas próprias dos tempos que ainda virão, nos permite contar com uma certeza: o comprometimento desta Casa com a educação pública como elemento constitutivo e libertador dos valores humanos que tanto prezamos e que são comuns a todos nós independentemente de nossas posições pessoais. Da perspectiva de uma instituição hoje quase centenária, cabe crer na esperança de um país mais justo e tolerante e de uma sociedade mais equânime e inclusiva.
A missão da Universidade se manifesta viva nas gerações que aqui se sucederam e no comprometimento com a transformação de pessoas que atuarão na sociedade e que construirão o futuro que queremos para nossa Universidade, nosso país e para as gerações vindouras. Como disse Darcy Ribeiro, defensor ferrenho do papel das universidades na construção do país, “nenhuma sociedade pode viver sem universidades”. E acrescentou: “a coisa mais importante para os brasileiros (...) é inventar o país que nós queremos”. O mesmo Darcy Ribeiro disse mais tarde: “Só há duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar. E eu não vou me resignar nunca”.
Que possamos juntos construir a universidade de que precisamos para inventar o país que queremos. E, para isso, nos indignaremos sempre que necessário.