Arte e Cultura

'Universidades exercem papel estratégico na gestão cultural', diz Juca Ferreira

Em palestra na abertura do Forcult, ex-ministro lamentou 'trabalho de demolição' imposto às estruturas da área

Juca Ferreira
Juca Ferreira: 'países que não investirem em cultura serão atropelados pela história'Imagem: Raphaella Dias / UFMG

“O Brasil é um barco à deriva. Hoje, ninguém consegue dizer com segurança qual o futuro do país. As instituições estão sendo capturadas por dentro, e as evidências dos crimes cometidos pelos aliados do governo federal ‘passam batido’, não geram grande repercussão. Mas eu acredito que o Brasil é muito maior que esse projeto medíocre, reacionário, retrógrado da extrema direita. Felizmente, a comunidade resiste. E nós vamos vencer. O povo brasileiro está começando a aprender a fazer frente a essa onda negativa. Precisamos, nesse sentido, nos preparar para o próximo ciclo democrático.”

Com base nessa premissa, o sociólogo e ex-ministro da Cultura Juca Ferreira fez na tarde de ontem, 21, a palestra de abertura 4º Fórum de Gestão Cultural das Instituições de Ensino Superior (Forcult), evento que está sendo realizado de forma integrada ao 52º Festival de Inverno UFMG. Juca traçou um extenso panorama da realidade cultural do país, citando gargalos e sugerindo caminhos para a superação do atual estrangulamento vivido pelas instituições nacionais. “O mundo está avançando muito rapidamente, e os países que não investirem em educação e cultura vão ficar para trás, serão atropelados pela história”, alertou. Os dois eventos seguem até quarta-feira, 23, com extensa programação.

‘Retaguarda acadêmica’
Sociólogo com trajetória profissional dedicada à vida política e às ações culturais e ambientais, Juca destacou, em sua fala, o papel estratégico que as universidades públicas têm para a cultura de um país como o Brasil. “Gestores como eu, que são os operadores da política pública de cultura, precisam da retaguarda do ambiente acadêmico, das universidades. Porque não dá para ir processando e formulando as muitas questões que aparecem no próprio desenvolvimento da gestão cultural – sejam questões próprias da cultura, da arte ou relativas à gestão pública. As universidades são centrais”, disse ele.

O ex-ministro da Cultura dos governos Lula e Dilma destacou as boas cooperações que conseguiu firmar com a UFMG durante o período em que foi secretário de Cultura de Belo Horizonte, de julho de 2017 a novembro de 2019. Esse período é considerado pelos próprios gestores da UFMG como um dos mais prolíficos para o estabelecimento de parcerias formais entre a Universidade e o município. “Juca foi um parceiro fenomenal da UFMG, fizemos grandes projetos juntos”, confirmou a reitora Sandra Regina Goulart Almeida na abertura do evento.

Desmonte
Juca Ferreira lamentou o que chamou de desmonte da cultura nacional promovido atualmente pelo governo federal, com o ataque sistemático às instituições culturais do país. “Extinguiram o Ministério da Cultura, estão atacando o Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional], uma instituição de Estado, encarregada de preservar a memória e o patrimônio cultural brasileiro. Estão tentando restabelecer a censura, estão destruindo a Cinemateca Brasileira, que tem a guarda de todos os filmes que foram feitos no Brasil. Estão desmoralizando a Fundação Cultural Palmares, perseguindo artistas e destruindo a bem-sucedida política de cinema brasileira. Ou seja, estão fazendo uma destruição sistemática de todo o arcabouço institucional que permitia ao Estado cumprir as suas responsabilidades na área cultural. É um trabalho de demolição”, afirmou.

Diante das ameaças que pairam sobre a universidade brasileira, o ex-ministro manifestou sua solidariedade. “Solidarizo-me com vocês em favor da autonomia universitária, em favor da universidade pública brasileira, que vem sofrendo ataques violentos desde que afastaram a presidenta Dilma, na tentativa de minimizar a produção intelectual e cultural brasileira, a produção de conhecimento que as universidades públicas brasileiras representam”, afirmou. 

Cem anos da Semana de Arte Moderna
Ao fim de sua conferência, Ferreira convocou a universidade a se antecipar na preparação das comemorações para os 100 anos da Semana da Arte Moderna, realizada em 1922, como um modo de contra-ataque.

“Esse foi o evento cultural mais importante da história [da cultura] brasileira. Ele possibilitou a modernização da arte e da cultura do Brasil, do conceito, da sensibilidade, da visão sobre o próprio país. Ele nos descolonizou, nos livrando daquela leitura do Brasil que era feita através dos óculos europeus. Foi um movimento de riqueza tão grande que praticamente tudo o que ocorreu culturalmente no Brasil depois disso teve esse momento como referência direta ou indireta, consciente ou inconsciente: tropicalismo, bossa nova, poesia concreta. Portanto, eu espero que a celebração não seja apenas algo formal e na data. É preciso deflagrar um processo de reflexão. O que ainda é válido nas questões que a Semana de 22 levantou? O que foi superado? A academia pode ter um papel importantíssimo ao abraçar essa celebração com antecedência, abordando à exaustão as questões que esse acontecimento suscitou”, defendeu.

Sandra Goulart Almeida
Sandra Goulart Almeida: ataques às universidades devem ser respondidos com reflexão críticaImagem: Raphaella Dias / UFMG

Autonomia universitária em risco

Na abertura do evento, a reitora Sandra Goulart Almeida disse que a organização do evento é uma forma de resistir a tudo que as universidades têm sofrido nestes últimos tempos. "A cultura tem sido muito afetada por este momento excepcional que estamos vivendo no enfrentamento da covid-19". Temos nossa responsabilidade como instituições de ensino superior. É um momento difícil, muito delicado da vida nacional”, justificou.

Sandra alertou para os riscos que as universidades – e, por consequência, a sociedade brasileira – estão sofrendo com a ingerência do governo federal em processos que, constitucionalmente, deveriam restringir-se ao âmbito da autonomia universitária. “Estamos sendo afrontados naquilo que é uma das coisas mais importantes para a universidade brasileira: a autonomia para eleger os seus próprios dirigentes. É com grande tristeza que temos visto as universidades passando por momentos tão delicados em relação a isso”, lamentou a reitora, citando indiretamente o recente caso da UFRGS, em que o governo federal não nomeou para a Reitoria da instituição o dirigente mais votado pela comunidade universitária, cujo nome encabeçava a lista tríplice.

“Mas autonomia universitária significa o quê? Significa que nós temos liberdade de pensamento, de reflexão crítica e de administração. É algo que está na Constituição. Então esse é um ataque que merece ser respondido à altura: com muita reflexão crítica, com muita sabedoria, com muita altivez. Esse é o papel da universidade. E com produção de conhecimento e respeito pelo conhecimento que é produzido também fora da nossa universidade”, disse. “Nós temos de manter viva essa chama da autonomia universitária, a chama do pensamento livre, de autonomia crítica, que é tão importante para a nossa sociedade. As nossas instituições são responsáveis pela reflexão crítica”, insistiu.

Da abertura, participaram, ainda, os professores Fernando Mencarelli, diretor de Ação Cultural da UFMG, e Edward Madureira Brasil, presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). 

Mencarelli celebrou o fato de, em sua quarta edição nacional, o Forcult estar consolidado “como um espaço regular de articulação entre as áreas de cultura das instituições de ensino superior”. O diretor de Ação Cultural da UFMG informou que, neste ano, o evento está reunindo aproximadamente 280 participantes de 90 instituições públicas de ensino superior de todo o Brasil.

Edward Madureira, por sua vez, reforçou o alerta dado pela reitora Sandra Goulart. “Em um momento como este, em que temos claramente uma antipolítica de cultura, de educação, de ciência e de tecnologia, as universidades têm a responsabilidade de buscar alternativas. E eu não tenho dúvida alguma de que a nossa força está em nossa capacidade de integração e articulação”, disse. “Mais do que nunca, precisamos estar juntos para fazer esse enfrentamento.”

Todos
Forcult segue com programação até amanhã, quarta, 23Imagem: Raphaella Dias / UFMG

Ewerton Martins Ribeiro