Um novo tempo
O ano de 2016, a Universidade Federal de Minas Gerais integralizará a implantação de 50% das vagas de seus cursos de graduação a estudantes oriundos de escolas públicas, incluindo os de baixa renda e autodeclarados pretos, pardos e indígenas, conforme previsto na Lei 12.711/2012, mais conhecida como Lei de Cotas.
Confesso que gostaria muito de ter ingressado na UFMG por meio dessa política, embora tenha consciência de que muitos poderão achar estranho tal desejo. Explico: imaginem o que significaria para um estudante negro como eu ingressar no ensino superior por meio de uma política que é resultado de muitos anos de debates, reivindicações e mobilizações em prol de uma universidade mais justa e mais plural! Para mim, ingressar no ensino superior por meio das cotas teria esse significado, e acredito que é isso que a política de cotas representa para boa parte dos estudantes que ora ingressam na UFMG.
Entretanto, apesar de não poder realizar tal desejo, orgulho-me bastante de ter ingressado na UFMG em um contexto pré-cotas e participado de tantos grupos – programas como Ações Afirmativas na UFMG, Observatório da Juventude, Movimento Afirmando Direitos (MAD) e Conexões de Saberes – que, desde o início da década de 2000, lutaram para que o processo de democratização da Universidade deixasse de ser apenas “um debate necessário” e se transformasse em políticas concretas.
Justamente por ter feito parte desse grande movimento por uma outra universidade é que recebi com grande felicidade as primeiras notícias sobre o desempenho de estudantes cotistas na UFMG. Em abril de 2015, a Pró-reitoria de Graduação promoveu evento para apresentar dados do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e do perfil discente da UFMG, além de relatórios elaborados pelo Setor de Estatística com informações sobre cada curso de graduação ofertado pela Universidade. Entre as muitas informações apresentadas, a avaliação do desempenho de estudantes cotistas na UFMG mereceu destaque, tendo sido objeto de reportagem do jornal Estado de Minas. “Desempenho de cotistas é igual ou superior aos demais alunos”, foi o título da matéria.
Vale ressaltar que diversas universidades públicas brasileiras já haviam chegado a conclusões semelhantes ao longo da década de 2000, já que, mesmo antes da Lei 12.711, cerca de 70 instituições de ensino superior, estaduais e federais, haviam implementado alguma forma de ação afirmativa, com grande destaque para a política de cotas.
A UFMG, no entanto, resistiu fortemente a adotar políticas de reservas de vagas. Foi apenas em 2008 que implantou um modelo prevendo a concessão de 10% na pontuação obtida no vestibular a candidatos que frequentaram escola pública, da quinta série do ensino fundamental ao último ano do ensino médio, e mais 5% a candidatos que se autodeclarassem negros. Como se pode observar na leitura de matéria publicada por este BOLETIM, em 16 de maio de 2008, a adoção do bônus na UFMG foi uma opção às políticas de cotas sociais ou raciais. Isso fica claro na seguinte declaração do então reitor Ronaldo Pena: “O bônus depende da nota que o aluno da escola pública tira, o que valoriza o mérito do estudante que se aproxima da aprovação. O bônus vai equilibrar as condições de competição entre alunos de escolas públicas e privadas, sem prejudicar os estudantes de instituições privadas”.
Nos debates internos, o argumento meritocrático utilizado pelos difamadores das políticas de reservas de vagas sempre esteve acompanhado da profecia catastrófica sobre a queda da qualidade acadêmica das universidades públicas. A dúvida que pairava no ar à época era: “Será que os cotistas recém-chegados às universidades públicas – e à UFMG em particular – serão capazes de manter a excelência que tem sido marca dessas instituições?” Nesse sentido, a conclusão do estudo produzido pela própria UFMG merece mesmo ser repetida e compartilhada à exaustão.
Por outro lado, penso que a progressiva ampliação de estudos e análises sobre a nova realidade do ensino superior brasileiro, considerando o novo grupo de estudantes incluídos por meio das políticas de democratização, tem permitido a alguns pesquisadores – e poderiam possibilitar à UFMG – conhecer de modo mais abrangente as condições materiais desses novos estudantes e as estratégias utilizadas por eles no enfrentamento de possíveis dificuldades e, sobretudo, as novas relações que têm-se configurado no interior das comunidades acadêmicas após a entrada desse novo público. Adicionalmente, o ingresso de um novo “tipo” de estudante, marcado por diferentes experiências de vida, poderia representar uma excelente oportunidade para as instituições de ensino superior revisar e ampliar as teorias e os conteúdos estabelecidos e naturalizados por inúmeras disciplinas e cursos.
Na UFMG, vejo que tal ampliação de perspectiva já tem sido posta em prática, por meio do lançamento da formação transversal em Relações Étnico-raciais, História da África e Cultura Afro-brasileira, que agora se junta à formação transversal em Saberes Tradicionais. Esse é um sinal alvissareiro da disposição da UFMG em articular, com seriedade, o ingresso desses novos estudantes, com participação efetiva na fruição e na produção do conhecimento.
Ampliação do acesso e garantia do sucesso acadêmico. Esses são compromissos indissociáveis de uma universidade do nosso tempo e do tamanho dos nossos sonhos.
*Professor da Faculdade de Educação e coordenador do Programa Ações Afirmativas na UFMG