Boletim

Nº 1937 - Ano 42 - 17.04.2016

A praça por ela mesma

Adesão e resistência nos recônditos

Pesquisador da Fafich apresenta abordagem original da relação dos estudantes com a ditadura com base na história do Projeto Rondon

O famoso congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) desbaratado pelo sistema de repressão do regime militar em 1968, em Ibiúna (SP), tinha em sua pauta uma avaliação crítica do Projeto Rondon. Posta em prática um ano antes, a iniciativa dos militares que levava universitários para conhecer lugares dos quais nunca tinham ouvido falar foi também motivo de boicote do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFMG, que à época vivia uma espécie de legalidade de fato. A resistência dessas entidades logrou, contudo, efeito limitado: até 1985, quando o regime chegou ao fim, cerca de 900 mil jovens viajaram pelo país com o Projeto Rondon.

A estimativa é do historiador Gabriel Amato Bruno de Lima, que se dedicou ao tema nos últimos anos para sua pesquisa de mestrado. Ele chegou a esse número depois de cotejar fontes diversas, já que não encontrou informação oficial. E ficou surpreso: “Tendemos, de forma geral, a associar estudantes à resistência quando falamos em ditadura, mas constatei que houve adesão significativa dos jovens universitários, por motivos variados, à proposta do Projeto Rondon”, diz o pesquisador.

Voluntário do Projeto Rondon em ação, em Inhangapi (PA), 1974
Voluntário do Projeto Rondon em ação, em Inhangapi (PA), 1974 Revista Interior/Ministério do Interior

Amato salienta que adesão, apatia ou recusa dos estudantes se deram de formas distintas. Havia os que se juntavam às manifestações contra o regime e também participavam do Rondon. Outros ignoravam as duas opções, concentrando-se nos estudos. E havia quem se seduzisse pela chance de viajar com amigos, sem a família, conhecer novos lugares sem arcar com despesas. Alguns desejavam, ao viajar pelo projeto, resistir ao regime “por dentro”.

O autor do trabalho explica que os envolvidos na iniciativa atuavam, sobretudo até 1979, na fronteira entre os imaginários nacionalista e anticomunista. “Para os militares, os recônditos do país eram lugares vazios de nacionalidade e deveriam ser ocupados estrategicamente, além de servir de fonte de brasilidade para os jovens. Outra intenção era pôr os estudantes em contato com o ‘Brasil real’ e com um povo que, supostamente, não poderia ser contaminado pelas ideias importadas do comunismo”, ressalta Gabriel Amato.

Subordinado ou irresponsável

Projeto Rondon
Projeto Rondon Revista Interior/Ministério do Interior

O projeto recebeu esse nome em homenagem ao marechal Cândido Rondon, sertanista que no início do século 20 liderou missão do Exército destinada a integrar o Centro-Oeste brasileiro. A iniciativa teve origem em conclusões de seminário sobre educação e segurança nacional realizado em 1966, culminando com a decisão de aproximar estudantes e militares. “O objetivo de levar ao interior assistência social e apoio à infraestrutura era secundário – o estudante era a razão de existir do projeto. Principalmente em momentos de crise estudantil, como em 1968 e 1977, o regime quis incentivar uma participação ordenada, ou subordinada, em oposição ao engajamento, visto como irresponsável, associado ao movimento estudantil contrário à ditadura.”

As ações do Projeto Rondon eram distribuídas, entre outras, em operações nacionais (jovens do Sul e do Sudeste passavam suas férias de verão no interior das outras regiões) e em operações regionais (os grupos deslocavam-se para áreas carentes de seus próprios estados). Em 1969, começaram a ser instalados os chamados campi avançados – universidades montavam estruturas em cidades, e as equipes de docentes e discentes se revezavam para que as ações não fossem interrompidas. Houve 22 desses campi, e a UFMG, no período de 1972 a 1976, enviou a Barreiras, na Bahia, 708 alunos.

O pesquisador, que teve acesso a fontes inéditas, como documentos do próprio Projeto Rondon, salienta que seu trabalho revela uma dinâmica social complexa, em que estudantes universitários e a própria sociedade mantiveram uma relação multiforme com a ditadura. “A memória social fixa os estudantes no lugar de resistentes ou vítimas. Claro que não se pode subestimar a força das mobilizações contrárias ao regime, mas é possível perceber espectros de comportamento social distintos, o que ajuda a entender a longa duração da ditadura militar”, diz Gabriel Amato.

Dissertação: “Aula prática de Brasil”: ditadura, estudantes universitários e imaginário nacionalista no Projeto Rondon (1967-1985)
Autor: Gabriel Amato Bruno de Lima
Orientador: Rodrigo Patto de Sá Motta
Defesa: julho de 2015, no Programa de Pós-graduação em História

Itamar Rigueira Jr.