Olhar para o mal
Ensaios reunidos em livro sugerem que, para descobrir os valores simbólicos de uma sociedade, é necessário identificar seus delitos e transgressões
As abordagens realizadas no campo da literatura sobre o crime e a transgressão sempre subsidiaram (ou estimularam) reflexões em outras áreas do conhecimento, como o direito, a filosofia e a psicanálise. Um exemplo é o trabalho que Freud realiza com Édipo Rei, de Sófocles, estabelecendo, com base na obra, uma de suas mais importantes hipóteses psicanalíticas. Nesse sentido, a abordagem literária mais livre de temáticas relacionadas ao mal estaria intimamente ligada à potência de desenvolvimento humano – o fato de a literatura não se submeter à tutela do “politicamente correto” se relacionaria mais ou menos diretamente com a realização mais ampla dessa vocação progressista da arte literária.
“A lei prescreve o que é bom, o que é correto, o que é aceito pela sociedade. Contudo, essa prescrição é limitadora. Se o ser humano submeter-se plenamente a essa prescrição, não progride. Daí a função da arte”, argumenta o professor Julio Jeha, da Faculdade de Letras (Fale). Para ele, a arte transgressora investe contra a ordem em favor da renovação, no campo metafórico. “Precisamos da arte porque precisamos da transgressão para nos desenvolver”, diz, sugerindo que a arte possibilita aprender com as “experiências” do mal sem que se tenha de, necessariamente, vivenciá-lo empiricamente.
Com as professoras Lyslei Nascimento, também da Fale, e Laura Juárez, da Universidade Nacional de La Plata, na Argentina, Julio Jeha organizou o livro Crime e transgressão na literatura e nas artes, lançado recentemente pela Editora UFMG. Na obra, ensaístas do Brasil, da Argentina e de Portugal discutem estratégias de representação do crime, do delito e da transgressão na literatura, em diálogo com o cinema e outras artes, disciplinas e conhecimentos. Com as análises dessas representações, os autores buscam perscrutar, nas obras, os valores simbólicos das sociedades em que elas surgiram.
“Reunimos estudos que cobrem desde os textos clássicos latinos até os pós-modernos. Com a coletânea, tentamos oferecer uma amostra de como o crime e a transgressão, de forma ampla, ocorrem nas artes e de como as artes, em geral, e a literatura, em específico, dependem do mal, da transgressão, para que a sua produção ocorra”, explica o professor.
Obstáculo e progresso
Para Julio Jeha, a literatura e a filosofia lidam, basicamente, com a ideia ampla de mal. “Porque o mal é o obstáculo, qualquer obstáculo que se apresenta para o desenvolvimento do ser. É aquilo que impede que a pessoa atinja a sua plenitude”, diz. O paradoxo, sugere o professor, é que, ao mesmo tempo em que obsta a esse desenvolvimento, o mal também o estimula, na medida em que a transgressão convoca o progresso humano em direção ao novo, para além das limitações.
No volume, Julio Jeha assina o texto A morte de um estado de espírito: a trilogia californiana de Thomas Pynchon, que desfecha a obra. No ensaio Mulheres que matam: Judite, crime e redenção, Lyslei Nascimento discute a representação da violência feminina em obras literárias. Ao todo, o volume conta com 12 reflexões.
O livro é resultado das atividades do núcleo de estudos Crimes, pecados, monstruosidades (CPM), da Fale, que já fomentara a publicação de duas outras obras sobre o tema. Em 2007, Julio Jeha organizou o volume Monstros e monstruosidades na literatura, em que ensaístas abordam a categoria “monstro” como corporificação de tudo o que é perigoso, horrível e caótico na experiência humana. E, em 2009, Julio e Lyslei Nascimento organizaram a obra Da fabricação de monstros, em que uma galeria de monstros é tomada para ensejar análises sobre a intolerância, a transgressão, a desmedida, o totalitarismo, a violência e a ideia de mal absoluto. Os dois livros também foram publicados pela Editora UFMG.
Livro: Crime e transgressão na literatura e nas artes
Organizadores: Julio Jeha, Lyslei Nascimento e Laura Juárez
Editora UFMG
244 páginas / R$ 42 (preço de capa)