SOS para o SUS
Comunidade mostra preocupação com medidas como a proposta de emenda constitucional que quebra a vinculação de receitas para a saúde
A comunidade da UFMG não está mobilizada apenas em favor dos princípios democráticos e da valorização da educação e da tríade ciência-tecnologia-inovação. A estrutura de cuidados à saúde da população brasileira também é motivo de grande inquietação, que tem sido alimentada por iniciativas governamentais que poriam em risco a capacidade de manutenção de conquistas propiciadas pela Constituição de 1988, que tem o Sistema Único de Saúde (SUS) como um de seus principais símbolos.
“Desde o ano 2000, o orçamento da saúde é corrigido pela variação nominal do PIB, ou seja, acompanha a evolução da vida produtiva do país. A proposta de emenda significa engessamento inédito de recursos”
Uma dessas iniciativas é a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241, que determina vinculação dos gastos do governo federal, durante os próximos 20 anos, ao orçamento do ano anterior, apenas corrigido pelo índice de inflação. De acordo com simulação feita por entidades do movimento em defesa da saúde, o setor teria contado com menos R$ 314 bilhões de 2003 a 2015, se essa regra já estivesse em vigor. O estudo é citado pela professora Eli Iola Gurgel Andrade, da Faculdade de Medicina, integrante do grupo UFMG pela Democracia e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
“Desde o ano 2000, o orçamento da saúde é corrigido pela variação nominal do PIB, ou seja, acompanha a evolução da vida produtiva do país. A proposta de emenda significa engessamento inédito de recursos”, afirma Iola Gurgel, que é economista e professora do Departamento de Medicina Preventiva e Social.
Ela acrescenta que todos os governos, desde 1988, têm imposto alguma dificuldade na vinculação de receitas para o orçamento da seguridade social, garantida no Artigo 195 da Constituição Federal, o que gerou enorme prejuízo. “Mas ninguém havia tido a ousadia de quebrar o princípio constitucional que assegura a aplicação social de parte do que se arrecada com folha de salários, faturamento e lucro líquido das empresas.”
Do básico ao transplante
O Sistema Único de Saúde, ressalta a professora, é a única opção de atendimento para mais de 150 milhões de pessoas, e mesmo parte dos 50 milhões que contam com planos privados se beneficia da atenção básica, em postos próximos à residência, e de procedimentos de alta complexidade, como os transplantes e medicamentos de alto custo, sempre gratuitos.
“Ainda que com muitas limitações, temos um sistema nacional de atenção básica, que chega a áreas remotas, comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas. São mais de 30 mil equipes de saúde da família e 260 mil agentes comunitários, o que também torna o sistema de saúde muito relevante como gerador de empregos”, diz Iola Gurgel. Ela acrescenta que essa estrutura foi construída “a duras penas” e que poderia ser mais qualificada se cada equipe pudesse se dedicar a no máximo duas mil pessoas (hoje são quase três vezes mais), o que possibilitaria conhecer melhor e em menos tempo as necessidades de saúde dos grupos populacionais.
A respeito do suposto gigantismo do SUS, Iola salienta que o porte do sistema está relacionado com o objetivo de “garantir o direito de todo cidadão à saúde”. E que os mais de 20 anos de subfinanciamento “foram enfrentados pelo SUS com muita dignidade”. Ela lembra que o Brasil gasta hoje 8,3% do PIB com saúde, sendo que a maior parte desse gasto (54%) se dá com a compra de serviços privados. E ressalta, a propósito, que é preciso considerar o alto índice de renúncia fiscal ligada à saúde. Estudo realizado pelo Ipea dá conta de que o Estado gastou, em 2013, R$ 25,3 bilhões em isenção de impostos para pessoas físicas e jurídicas que contratam planos privados, apoio a hospitais filantrópicos e subsídios para medicamentos.
“No Brasil, o sistema é um mix de público e privado extremamente favorável para a saúde como negócio. A maioria das empresas de planos de saúde cuida apenas da média complexidade, já que transplantes, quimioterapia e terapia renal, além dos remédios de alto custo, ficam a cargo do governo”, diz Iola Gurgel.
Inovadora e ousada
Também dedicada a pesquisas sobre o Sistema Único de Saúde, a professora Alzira Jorge, da Faculdade de Medicina, destaca que a criação do SUS “foi consequência do maior movimento de inclusão social na História do Brasil” e que hoje atende a todos os brasileiros em várias situações e políticas. Ela considera que se avançou muito em quase 30 anos, mas, em razão mesmo da proposta ousada do sistema, ainda há muito a ser feito.
“Para isso, é necessário ampliar os investimentos e serviços, e não há como aceitar qualquer proposta de redução do tamanho do sistema público”, defende Alzira. “Ainda estamos longe de parâmetros de cobertura similares aos de sistemas universais europeus que nos inspiraram. Mais acesso ao SUS é um dos desafios cruciais para reduzir a desigualdade social e regional no Brasil.”
Iola Gurgel vislumbra, nas recentes movimentações de Executivo e Legislativo, incluindo apologia aos planos privados, sério risco à qualidade e ao caráter universal do SUS. “Se o sistema público deve atender somente aos destituídos, podemos presumir que vai perder em qualidade e amplitude de cobertura. Devemos perseguir, por exemplo, o modelo do Reino Unido, o primeiro sistema público universal criado após a Segunda Guerra Mundial, que atende a pobres e ricos com alta efetividade e a um custo suportável”, afirma ela.