A política na memória
Tese faz ‘leitura arqueológica’ de Memórias do cárcere para mostrar como Graciliano Ramos produz literatura política sem maniqueísmos
“Memórias do cárcere e outros textos de Graciliano Ramos (1892-1953) apresentam uma espécie de grande assembleia virtual ou um ‘jogo de argumentação’ – como Jacques Rancière define a política – que sustenta, exemplar e eficientemente, a ideia de agon, o conflito de vozes contrárias. Em determinada perspectiva contemporânea, é essa a própria definição de democracia”, comenta o pesquisador Willy Carvalho Coelho, ao falar dos resultados de sua pesquisa, que mereceu menção honrosa no Grande Prêmio UFMG de Teses de 2015.
O trabalho, realizado no âmbito do Programa de Estudos Literários, é resultado do que o autor denomina “leitura arqueológica”, que se dispõe a “depreender do texto as várias camadas de sentido que ele veicula: tempos narrativos, vozes diversas, performances narrativas específicas e originais, que determinam a qualidade estética ou axiológica do texto”.
Graciliano consegue produzir literatura altamente reflexiva, sem maniqueísmos
O professor Wander Melo Miranda, que orientou a pesquisa, ressalta que Willy Coelho promove discussão avançada do ponto de vista teórico, articulando o diálogo de Graciliano com filósofos e teóricos como Jacques Rancière, Michel Foucault e Giorgio Agamben. “Ele aborda a liberdade como questão política pelo viés literário, e não de maneira disciplinar, o que confere validade mais ampla e forte a sua análise. Não há compromisso com categorias políticas e sociais”, comenta Miranda. Willy Coelho explica ainda que, em vez de aplicar um conjunto de teorias ao texto, a proposta é alargar o repertório da crítica, extraindo do texto literário todo seu potencial de reflexão sobre a experiência.
De acordo com o pesquisador, o que define uma literatura como política é a forma da obra. Graciliano consegue produzir literatura altamente reflexiva, sem maniqueísmos, “inventando, diante de nossos olhos, a tal ‘assembleia virtual’ – em vez de falar pelos oprimidos, ele dá, literalmente, voz a todos”. Coelho explica que, em Memórias do cárcere, o general, o intelectual e o carregador de sacos são construídos “com a mesma disposição performativa”, têm a mesma chance de falar. “Isso acontece também com a própria personagem Graciliano, o que constitui estratégia narrativa ímpar e libertadora para explorar das memórias todo seu potencial de reflexão.”
Noção de poder
Willy Coelho conta que, ao iniciar o doutorado, tinha a hipótese, relativamente sustentável, de que a narrativa de Graciliano promove uma reflexão a respeito da noção de poder. Depois de analisar o romance Angústia, no mestrado, e de tomar contato com toda a obra do escritor alagoano – incluindo análises importantes –, ele partiu para a escolha das “alianças teóricas”, definidas de maneira a um tempo racional e afetiva.
“As principais influências verdadeiramente pragmáticas foram Jacques Rancière e Michel Foucault”, diz Coelho. “O primeiro, filósofo ainda vivo que se dedica à investigação do texto literário, me propiciou aprendizagem indireta e absolutamente preciosa a respeito do tema da política, sobretudo do conceito de democracia. Foucault, por sua vez, é uma espécie de maestro quando se trata de lidar honestamente com o tema do poder na contemporaneidade.”
A filosofia com a qual Coelho empreende diálogo propõe que a ideia de democracia se sustenta em desentendimento ou dissenso. Isso possibilita, segundo ele, “entender a tese de que a literatura reflete sobre o tema da política por meio de suas imagens ou cenas literárias”.
Ainda de acordo com o pesquisador, a investigação se apoiou também na -noção de “subjetivação”, que ganha em seu trabalho o aspecto de racionalidade. “Em termos simples, é um modo de refletir sobre como se organiza a natureza própria do pensamento, nas suas formas individual e coletiva”, diz -Coelho, cuja tese segue a cronologia dos eventos das Memórias, interrompida apenas para se discutir a -repercussão da noção de poder na também memorialística Infância (1945).
Tese: Incomensurável comum: políticas da escrita em Graciliano Ramos
Autor: Willy Carvalho Coelho
Orientador: Wander Melo Miranda
Programa de Pós-graduação em Estudos Literários