Boletim
Retrato literário de uma época
Além de uma antologia
Em edição comemorativa, Revista Literária da UFMG reúne textos que expressam, por meio da escrita, as inquietações de jovens brasileiros na segun
A história de uma publicação muito especial está sendo revivida e homenageada em forma de edição comemorativa. A Revista Literária, criada há 50 anos na UFMG, circulou por três décadas, com poucas interrupções, publicou cerca de 300 trabalhos de autores e de 110 ilustradores e definiu rumos profissionais e artísticos para pessoas de diversas áreas.
A RL – Revista Literária da UFMG – 50 anos será lançada na quinta-feira, 30, em evento na Faculdade de Letras (Fale). Organizado pelos professores Luis Alberto Brandão, da Fale, e Fernanda Goulart, da Escola de Belas-Artes, o volume contém 50 textos (contos, poemas, crônicas) que, a um só tempo, contam a história da publicação e revelam as inquietações de jovens que se manifestavam, por meio da escrita, no Brasil da segunda metade do século 20.
Criada em 1966 pelos alunos Luiz Vilela e Luis Gonzaga Vieira e pelo assessor de comunicação da UFMG, Plínio Carneiro, a Revista contou, desde o início, com o apoio do então reitor Aluísio Pimenta. Seu conteúdo era ditado por concurso anual, que premiava contos e poemas, e por convites para a “Segunda Seção”. Os concursos revelaram nomes como Sérgio Sant’Anna, Humberto Werneck, Maria Esther Maciel, Jaime Prado Gouvêa, Ronald Claver e Guiomar de Grammont. Até 1996, foram publicados 26 números; em 2002, uma última edição chegou a ser impressa. A Revista Literária teve ótima receptividade, dentro e fora do Brasil, atraindo a atenção da imprensa e de leitores qualificados.
A edição comemorativa é resultado de trabalho de curadoria que durou cerca de dois anos. Quando assumiu a Câmara de Pesquisa da Fale, no início de 2015, Luis Alberto Brandão deu sequência ao trabalho de digitalização dos periódicos vinculados à Unidade. Ao tomar contato com a RL, deu-se conta da proximidade do cinquentenário. “Investigamos a história da publicação e ficamos impressionados com a importância e a qualidade dos textos, muitos deles de alunos de graduação”, conta. Criou-se, então, um projeto de pesquisa. “Não foi algo feito a toque de caixa, houve planejamento, e o grupo leu todos os números. Foi um processo intenso e emocionante.”
Segundo Brandão, a edição transcende a ideia de antologia. “Procuramos construir uma narrativa do que era viver no Brasil naquelas três décadas. Fomos ambiciosos ao desejar que as principais questões estivessem retratadas na seleção, e isso foi possível. Os textos emanam sonhos, críticas, angústias. E seguem uma ordem que não é aleatória, mas também não é explícita. Eles conversam entre si”, explica o organizador, destacando que a escolha do material buscou o equilíbrio no que se refere, entre outros aspectos, aos gêneros literários e à presença de mulheres – elas aparecem como temática e como autoras, com discussões de diversas naturezas.
‘Clima gráfico’
A edição que comemora os 50 anos da Revista Literária revisita o antigo projeto gráfico, mantendo o mesmo formato. “A ideia é que esse número seja parte da coleção da RL”, diz Fernanda Goulart, da EBA, que usou texturas de todas as ilustrações publicadas na revista para compor um “clima gráfico” que se aproximasse do que foi a publicação, mas que, ao mesmo tempo, conferisse certo frescor à edição comemorativa. “Não houve uma curadoria de ilustrações, como foi feito com os textos. Criamos uma nova imagem, por meio da apropriação das imagens antigas”, conta.
Além disso, a professora criou uma sobrecapa em que aparecem todas as cores usadas pela Revista, aplicadas em fatias dos números (1 a 27) das edições. Internamente, a sobrecapa lista os pseudônimos sob os quais os autores entregavam seus trabalhos para seleção. A coruja que compõe a logomarca foi redesenhada, levando em consideração as muitas variações dos desenhos antigos, e aparece no canto inferior de 42 páginas, como em um voo.
Fernanda Goulart destaca que a edição que será lançada no dia 30 restaura a parceria da Faculdade de Letras com a Escola de Belas-Artes, uma das marcas da Revista – concursos de ilustrações também chegaram a ser realizados. Ela vislumbra uma possível retomada da publicação “com participação mais ativa das artes visuais, que poderiam não estar apenas subordinadas aos textos literários”.
Inspiração
“É simples e barato, e tem impacto imenso.”
A história da Revista Literária é inspiradora, na visão de Luis Alberto Brandão, porque foi um exemplo de “trabalho compartilhado, aberto, democrático, envolvendo alunos de graduação e pós, professores e autores de áreas diferentes”. A publicação representa também a ideia de uma universidade propositora de ações culturais. “A UFMG assumia, com a RL, o papel de estimular a produção literária, em vez de ficar a reboque do que era feito lá fora”, diz Brandão. “É simples e barato, e tem impacto imenso.”
Segundo o professor da Fale, a UFMG, em razão do peso que tem, no Brasil e no cenário internacional, precisa ter de novo uma revista literária ou de arte, relevante, esperada, capaz de despertar novas carreiras. “As oportunidades de publicação são poucas para quem está começando, e a Universidade deve ser esse canal de expressão e de avaliação da qualidade de novas produções.” Brandão imagina uma nova revista para a UFMG em moldes um pouco diferentes, que surja de discussões envolvendo um grupo amplo e tenha respaldo institucional forte, com perspectivas concretas de vida longa.
O organizador ressalta que, ao longo do trabalho que resultou na edição comemorativa da RL, esteve sempre dominado por uma “enorme responsabilidade com o material que tinha em mãos, produto da energia criativa e intelectual de indivíduos e gerações”.
Jeitinho de livro
Premiado no concurso de 1967, o jornalista e escritor Humberto Werneck, então estudante de Direito, teve publicado no segundo número da RL o conto Acontecimento de família. Cinquenta anos depois, ele diz que as lembranças são poucas, mas marcantes. “Era sensacional que nós, jovens literatos, tivéssemos oportunidade de publicar em um veículo menos mambembe que os jornais e revistas literárias da época. Lembro que a RL tinha um jeitinho de livro. Era uma vitrine, com chancela da Universidade”, comenta Werneck, que é colunista do jornal O Estado de São Paulo e autor de obras como O santo sujo: a vida de Jayme Ovalle e O desatino da rapaziada: jornalistas e escritores em Minas Gerais (1920-1970).
A escritora e professora Guiomar de Grammont, da Universidade Federal de Ouro Preto, estreou na Revista Literária, em 1990 – quando cursava o mestrado em Filosofia –, com o conto O diário de Medeia, que mescla erotismo e desencanto burguês. “Escrevia desde criança, e esse texto foi um ponto fora da curva. Deu a tônica de muita coisa que escrevi desde então”, revela Guiomar, acrescentando que o conto foi o carro-chefe do livro O fruto do vosso ventre, com o qual ganhou o Prêmio Casa de Las Américas, em 1993.
“A menção honrosa no concurso e a publicação do conto foram um empurrão maravilhoso, e ainda tive o prazer de viver um pouquinho dos bastidores da revista”, completa Guiomar, que é curadora do Fórum das Letras de Ouro Preto e organizou a homenagem ao Brasil no Salão do Livro de Paris, em 2015.
Outro escritor consagrado que passou pela Revista Literária é Sérgio Sant’Anna, autor de A senhorita Simpson, Confissões de Ralfo, O monstro, entre outros. Ele teve o conto Didática publicado no primeiro número da RL, avalizado por uma menção honrosa. “Era uma oportunidade de os novos autores publicarem e, mais que isso, serem avaliados”, afirma Sant’Anna, que à época cursava Direito e mais tarde voltaria à Revista como membro da comissão julgadora.
Coelho de Alice em Wonderland*
Chego atrasada ao século XX.
Tarde demais
para amar a máquina
para soar buzinas, fábricas
ou chaleiras, me lambuzar
de óleo e elétrons.
Fora de hora
na era dos pós
espeto a modernidade
na veia poética.
*Rita Espeschit (publicado originalmente em 1989)
Sinfonia número quarenta*
Parece até brincadeira, mas tanto Mozart assim dá para desconfiar. É só ligar o rádio e lá vem a quadragésima. A gente vira o dial, muda de rádio, e Mozart continua presente. Liga a televisão, corre os olhos pelos jornais – olhaí de novo a quadragésima. Dá ou não dá para desconfiar?
Será que o “molto allegro” está avisando, informando; nos meandros do “andante”, do “allegretto”, há alguma mensagem, destinada a uma resistência, a uma abertura? Parece até romance policial, mas não é. Se fosse música popular, de Chico, Roberto ou Bethânia, ainda passava. Mas a “Sinfonia número 40”, do austríaco Wolfgang Amadeus Mozart, tocada a toda hora, virada e dissecada pelos jornais, executada pelas sinfônicas regionais, assobiada pelos cantos da cidade, tudo isto dá para desconfiar.
*Plínio Carneiro (Trecho de conto publicado originalmente em 1975)