Culturas múltiplas

A casa grande não descansa

Eu vivo a (e na) UFMG há exatos 17 anos. Onze como estudante e seis como professor. 

Fiz graduação em Ciências Sociais e mestrado em Sociologia ao longo da primeira metade da década de 2000 e concluí o doutorado em Educação nos primeiros anos da década de 2010. Sempre na UFMG e sempre estudando e me dedicando a temas relacionados à erradicação das desigualdades e do racismo na escola e na sociedade brasileira. Atuei, durante a graduação, em dois programas de ensino, pesquisa e extensão da Faculdade de Educação: Ações Afirmativas na UFMG e Observatório da Juventude. Participei, no mesmo período, de várias mobilizações políticas em prol da ampliação da presença de populações historicamente excluídas do ensino superior no Brasil. Olhando para trás, percebo que avançamos bastante. Hoje não conheço

todos os e todas as estudantes negros(as) da universidade, o que, no início dos anos 2000, era relativamente fácil. Mesmo sem conhecer todos (as) pelo nome, era ­possível perceber que poucos estudantes negros circulavam pelos espaços da Universidade. 

Em 2003, no último ano de graduação, morei em um apartamento perto do campus Pampulha, em um “quartinho de empregada”, único lugar que conseguia pagar com o valor da minha bolsa de extensão. Durante os quase 12 meses que residi ali naquele quartinho, foi impossível não pensar nos inúmeros quartinhos onde minha mãe havia “morado” antes de conseguir comprar seu barraco na favela do bairro Água Branca, em Contagem, dando, assim, um lar aos três filhos que ela criava sozinha. 

Era impossível também não associar aquele meu espaço com a disciplina de Sociologia Brasileira, que eu cursava na ocasião, e com o livro que estávamos lendo naquele momento: Casa grande e senzala. Eu, jovem negro, da periferia da Região Metropolitana de Belo Horizonte, vivendo em um apartamento amplo, numa área nobre, e dividindo o apartamento com mais três jovens brancos. Nenhum dos três moradores com quem eu dividia o imóvel era de família com muitas posses, mas era eu aquele que, se não fosse no quarto da empregada, não teria condições de morar ali. Lembro-me agora que eram raras as ocasiões que convidava amigos ou namoradas para ir ao apartamento. Não havia nada de interessante para mostrar ali.

A naturalização e a fetichização da Casa Grande e também da Senzala evidenciam que pensar – como eu mesmo cheguei a pensar – que toda a universidade evoluiu foi um ledo engano.

Naquele período era impossível não pensar nas razões que levavam arquitetos a projetar residências que restauravam (ou mantinham), em pleno século 21, a mesma lógica de separação de corpos e de vidas: CASA GRANDE e senzala. Na ocasião, pensei em desenvolver um projeto de pesquisa baseado em visitas a prédios com as conhecidas dependências de empregadas e conversar com as trabalhadoras, mas acabei desistindo. 

No fim do mês de junho deste ano, fui devolvido abruptamente a essas lembranças nem um pouco agradáveis. Por meio de uma nota de repúdio, redigida pelo Centro Acadêmico da Escola de Arquitetura e Design da UFMG, fui lembrado que não avançamos tanto assim. Na nota coletiva, os estudantes do curso de arquitetura e urbanismo criticaram um trabalho da disciplina Casa Grande que consistia em projetar um imóvel de alto padrão com espaço separado para empregados – com quartos e banheiros incluídos. Sim, Casa Grande em pleno século 21. De acordo com os estudantes, a atividade proposta “incorpora a senzala e reforça os moldes de dominação em pleno século 21”. Concordo integralmente com eles.

A naturalização e a fetichização da Casa Grande e também da Senzala – não podemos esquecer a existência do restaurante gourmet denominado Senzala localizado em bairro nobre paulista, nem do queijo mineiro também nomeado como Senzala – evidenciam que pensar – como eu mesmo cheguei a pensar – que toda a universidade evoluiu foi um ledo engano. De fato, nem toda a universidade “engoliu” a entrada de novos corpos, experiências e consciências no espaço que, por alguns, ainda é visto como a CASA GRANDE. Como já havia dito em uma postagem antiga em uma rede social: A CASA GRANDE pira, mas não descansa.

Em tempos de tantos retrocessos, não  é espantoso deparar com disciplinas que nos ensinam a construir CASAS GRANDES e Senzalas. Sim, pois o trabalho da Arquitetura não se propõe ensinar a construir apenas a CASA GRANDE. Nele também se propõe ensinar a construir senzalas. Mesmo não espantados, estamos indignados. Afinal, é assim, silenciosamente, que o racismo institucional se reproduz em nossa sociedade.

Entretanto, como nos ensina a professora Nilma Lino Gomes, em uma publicação referente a esse episódio: que a Casa Grande não se iluda. O contrário da Casa Grande não é a senzala. O contrário da Casa Grande é o Quilombo.


Professor da Faculdade de Educação e ­pró-reitor adjunto de Assuntos Estudantis da UFMG

Rodrigo Ednilson de Jesus