Vida vigilante
Recentemente, foram realizados, no campus Pampulha, o 1º Colóquio de Psicologia, Gênero e Sexualidade e, no campus Saúde, a 1ª Semana de Diversidade Sexual e de Gênero, que reuniram diversos pesquisadores, educadores, militantes e psicólogos de todo o Brasil para congregar esforços em prol da sistematização das experiências de defesa dos direitos das pessoas LGBT, com foco no campo da garantia dos direitos humanos. Esses eventos foram consoantes com as pesquisas que realizamos, pela Fiocruz Minas, com a comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, e um dos resultados da iniciativa foi o desvelamento de como vivem as pessoas LGBT.
As entrevistas realizadas em nossa pesquisa e posteriores análises nos levaram à constatação de que há certo padrão de vida referenciado na norma do outro, isto é, a heteronorma. Advinda da prática social hegemônica construída e reproduzida em nossa sociedade (passível, portanto, de desconstrução e transformação), a heteronorma se constitui de diversos pressupostos que se impõem a todos os seres e se perpetuam ao longo do tempo. De forma geral, sua atuação baseia-se no que deve ser o homem – seu corpo é definido, sua performance é delimitada e suas ações são planejadas para que não se aproxime do “não homem”. Para a heteronorma, a mulher sequer tem identidade, só lhe restando orbitar em torno do homem e se contentar com as sobras identitárias. Ela tem uma identidade-satélite.
Apesar de manter sua posição hegemônica, a heteronorma disputa com outros conjuntos de pressupostos pelos corpos entrantes e presentes nessa sociedade, e os campos de disputa são os mais variados: veículos da mídia, espaços formativos, pontos de saúde, enfim, todos os aparatos comunicadores culturais criados pela humanidade. Durante a disputa das normas, os seres resistem ao existir, cada qual defendendo seu projeto de ser humano. Ao nos depararmos com atos de feminicídio trans no YouTube ou agressões a lésbicas e gays em locais públicos, estamos presenciando e participando dessas disputas.
Por ser hegemônica, a heteronorma prevalece no cotidiano e se mascara como norma onipresente e única, que precisa ser seguida e reproduzida.
Por ser hegemônica, a heteronorma prevalece no cotidiano e se mascara como norma onipresente e única, que precisa ser seguida e reproduzida. Essa ocorrência demanda que os outros seres (criaturas e criadores dos outros conjuntos de pressupostos) mantenham constante estado de atenção, pois estão em território inimigo. A rua, a praça e o bar são zonas de conflito, o que torna o dia a dia perigoso. A esse modo de viver chamamos aqui de “vida vigilante”. É necessário pontuar que não existem espaços exclusivos das normas em disputa; o que parece ocorrer é que, como os seres transitam física e normativamente, a heteronorma é materializada em locais nominados LGBT (quando alguém é vítima de bifobia em uma boate simpatizante, por exemplo) e pode ser rompida em espaços tradicionalmente heteronormativos, como delegacias (onde há o acolhimento à diversidade LGBT).
A vida vigilante é vivida tanto para conformar-se como para transformar-se. A conformação serve para sobreviver e põe o corpo, a linguagem e as ações em um padrão para ser aprovado e aceito, exigindo que tudo esteja dentro do controle: andar de homem, roupas de homem, coisas de homem. Caso não seja assim, o ser será excluído, seja fisicamente (para fora de casa, por exemplo) ou simbolicamente (para fora do convívio social, relegado à solidão), ou forçado a se adequar aos padrões, por diferentes meios, como até mesmo internações compulsórias em clínicas de “reabilitação” ou psicoterapias de conversão – a famigerada “cura gay”.
Já a transformação é opção para defender pressupostos não heteronormativos e influenciar os demais seres circundantes, estabelecendo, então, outro campo de disputa: o próprio corpo. A vida vigilante será um modo de viver, pois, a todo instante, será necessário defender tal posição como legítima e legitimadora. Metaforicamente, a vida vigilante de conformação aponta suas câmeras de monitoramento para dentro, e a de transformação as direciona para fora. Sabemos que a direção das câmeras indica onde está o perigo e o que requer atenção cuidadosa.
Além disso, a heteronorma é altamente permeável por conta de seu caráter de invisibilidade. Quando clama em seus escritos para que deixemos a norma falar, Fernando Seffner nos aconselha a tirar dela essa capa de invisibilidade, a questioná-la, superá-la e mostrar quais vidas queremos ter.
Explicitado o que é vida vigilante, podemos ir além da comunidade LGBT e focar também modos de viver de pessoas negras, com deficiência e de demais conjuntos que buscam viver pela sua própria norma e não pela do outro. Em cada grupo vulnerável, a vida vigilante é vivida diferentemente, com estratégias de enfrentamento diversas e específicas para cada abuso contra suas identidades. A vigilância, no entanto, permanece.
*Bacharel em Gestão de Serviços de Saúde pela UFMG e mestrando em Saúde Coletiva no Centro de Pesquisas René Rachou da Fundação Oswaldo Cruz