Literatura para o paladar
Pesquisas analisam, em obras literárias, conjugação da comida com temas como amor, infância, memória, morte e cultura
Obras literárias como a do mineiro Pedro Nava não passam brevemente pela cozinha. O universo em que se encontram o preparo e a degustação dos alimentos ocupa páginas e mais páginas e cumpre papel essencial nas narrativas de obras como Baú de ossos e Chão de ferro, desvelando traços sociais, econômicos e severas relações de poder. Se Nava faz da comida memória, escritores como Drummond e Fernando Pessoa misturam gastronomia ao amor; outros, como Monteiro Lobato, visitam a cozinha para falar da infância.
“A comida, ou a falta dela, intercepta a narrativa também. Não é apenas a cereja do bolo, o tema oferece campo vastíssimo de reflexão”
“A comida, ou a falta dela, intercepta a narrativa também, por exemplo, em Marcel Proust, Graciliano Ramos, Mario de Andrade e Clarice Lispector. Não é apenas a cereja do bolo, o tema oferece campo vastíssimo de reflexão”, afirma a professora Sabrina Sedlmayer, da Faculdade de Letras, que coordena o SAL – Sobre Alimentos e Literatura, grupo multidisciplinar criado em 2015, que agrega pesquisas, promove colóquios nacionais e internacionais. Durante os chamados “fluxos de pensamento”, encontros mensais abertos ao público, estudantes de graduação e pós-graduação apresentam trabalhos e discutem estudos em andamento.
Enquanto o professor de letras clássicas Teodoro Rennó disseca aspectos variados no banquete da Odisseia, de Homero, a graduanda Camila Carvalho explora a temática da antropofagia no conto Nau Catrineta, de Rubem Fonseca. Outra frequentadora das reuniões do SAL é a mestranda Laís Velloso, que defende a importância do paladar na obra de Ítalo Calvino. Ela se concentra no conto Sob o sol jaguar, mas estabelece relação com outras obras do escritor italiano. Laís trabalha na linha de pesquisa Políticas do contemporâneo, que integra o Programa de Pós-graduação em Estudos Literários.
De acordo com Sabrina Sedlmayer, diferentemente do que ocorre em Portugal e na França, o Brasil não tem tradição de estudos sobre a presença da comida na literatura, mas esse quadro vem mudando: “O paladar foi um sentido tradicionalmente menosprezado, preterido em favor da visão e da audição”. A professora comenta também que a comida e a cozinha aparecem na literatura de forma não encontrada em livros de história, seja retratando “as habilidades culinárias das escravas e salvando-as do anonimato”, no caso de Nava, seja expondo a realidade da migrante nordestina em A hora da estrela, na figura de Macabéa, cuja dieta, assim que chegou ao Rio de Janeiro, era composta de café, refrigerante e cachorro quente, produtos da “modernização”.
Jacuba de Riobaldo
Numa de suas incursões mais recentes pelo mundo em que comida e letras se misturam, Sabrina Sedlmayer encontrou, em Grande sertão: veredas, a jacuba, solução de que muitas vezes lançou mão o jagunço Riobaldo para enganar a fome. “Naquele dia eu estava de jejum quebrado só com uma jacuba”, relatou o famoso personagem de João Guimarães Rosa, em um dos momentos da sua árida travessia.
Trata-se de pirão, sopa ou refresco, quente ou frio, que pode ser preparado com água, café, chá ou mesmo cachaça e, para engrossar, leva farinha de milho ou de mandioca. Geralmente, é adoçado com mel ou rapadura. A ideia de arremedo, nota a pesquisadora, remete a outro termo do português brasileiro popular: gambiarra, que, no cotidiano, significa soluções não planejadas, precárias, para resolver problemas de emergência. “Os dois termos dizem muito de traços típicos do Brasil, da sobrevivência baseada no improviso”, diz Sabrina Sedlmayer.
A associação entre jacuba e gambiarra rendeu breve estudo (envolvendo também as artes plásticas e a música) apresentado no último encontro da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic). Essa apresentação lhe valeu convite para desenvolver o verbete gambiarra para obra que está sendo produzida pelo Species – Núcleo de Antropologia Especulativa, sediado na Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Ao fim do artigo Jacuba é gambiarra, a pesquisadora destaca que, na prosa de Guimarães Rosa, jacuba surge “como uma espécie de fórmula que comporta, a um só tempo, um alimento com ingredientes básicos, capaz de temporariamente saciar, e algo que se assemelha a sua escrita”, marcada, segundo ela, por uma dinâmica ousada e pela capacidade de invenção de um léxico muito próprio.