De memórias e ruínas
Pesquisa da Belas Artes alia conceitos e fotografia artística para retratar comunidades em processo de desapropriação e desaparecimento
Estamos no Ceará: Cococi, no sertão dos Inhamuns, o Baixio das Palmeiras e o Baixio do Muquém, ambos na região do Cariri. A primeira é uma cidade abandonada, onde vivem oito pessoas. Os dois outros são distritos rurais do município de Crato, onde muitas famílias enfrentam processo de desapropriação devido à construção de um canal. Nesses locais, o pesquisador e fotógrafo Rubens Venâncio encontrou o objeto para sua tese de doutorado, defendida no ano passado, na Escola de Belas Artes.
Experiente quando se trata de realizar trabalhos acadêmicos diretamente associados a seus ensaios fotográficos – tem sido assim desde a graduação –, Venâncio vem se dedicando a questões relacionadas ao esquecimento, à memória e à ausência. Nos últimos quatro anos, ele se dividiu entre leituras, entrevistas, produção de um diário e criação fotográfica nessas regiões cearenses, que já eram conhecidas dele, para levar a cabo investigações na fotografia artística e no campo conceitual.
“A criação em fotografia me motivou a pensar em ruína, memória, esquecimento e questões como os usos do arquivo pela arte e como a imagem fotográfica pode trabalhar poeticamente uma plasticidade para a memória”, explica Rubens Venâncio, que se inspirou também em teóricos como Georges Didi-Huberman (o papel das imagens), Walter Benjamin (a noção de rastro) e Paul Ricoeur (relações entre memória, história e esquecimento).
Polaroid e digital
Compõe a tese o ensaio Iminências – o título remete ao desaparecimento e à desapropriação, que parecem inevitáveis –, dividido entre as coleções “lugar-ruína” e “lugar-memória”. A primeira, segundo o pesquisador, foi feita com filme Polaroid grande formato e procurou estabelecer memórias levando em conta as complexidades vividas pelos habitantes inseridos no contexto das iminências. “Nesse cenário, propus o que chamei de dobra entre a ruína da fotografia e a ruína da vida”, diz Venâncio. Ele explica que o Polaroid usado por ele é um material vencido, que, aliado a outros fatores, serve a sua estratégia de deixar afetar-se a superfície fotográfica, com resultados imprevisíveis quanto à corrupção da imagem.
A coleção “lugar-memória”, em formato digital, reúne imagens criadas livremente de locais considerados significativos pelos moradores. “Nessa coleção, procurei perceber, pela via da criação fotográfica, a relação com o espaço, diante da imposição das desapropriações e no cenário de desaparecimento”, diz.
Rubens Venâncio chama de “memória-montagem” a metodologia que assumiu e que entrelaçou narrativas de memória e narrativas de imagem.
“O dispositivo funcionou da seguinte maneira: criou a imagem no momento em que os baixios e o Cococi despontam como imagem-acontecimento e fez-me deslizar para dentro da imagem com a feitura do ensaio” , conta Venâncio. A imagem detonou as possibilidades de interpretação e conhecimento ao entrelaçar ruínas, esquecimentos e iminências, e destaquei uma ‘capacidade de interpretação narrativa’, para usar o termo de Jaime Ginzburg no artigo ‘A interpretação do rastro em Walter Benjamin’.”
Tese: Superfícies imaginadas: fotografia, ruína e iminência no sertão cearense
Autor: Rubens Venâncio
Orientador: Carlos Henrique Falci
Defesa: junho de 2017, no Programa de Pós-graduação em Artes