As bandeiras mudaram
Pesquisa em jornais editados por mulheres revela como as reivindicações feministas se transformaram entre os séculos 19 e 21
Na década de 1870, o direito ao voto e à formação educacional eram algumas das principais reivindicações da mulher brasileira. A inserção feminina no mercado de trabalho passou a ser uma prioridade no século seguinte. Na virada do milênio, ganhou impulso a luta pela participação das mulheres na política, acompanhada da militância feminista.
Essas e outras representações da identidade feminina, documentadas em jornais que circularam no Brasil a partir do século 19, foram examinadas pela pesquisadora Gerlice Teixeira Rosa à luz da Análise do Discurso (AD). O estudo resultou na tese Noticiabilidade e imagens de si: ser mulher e ser notícia em jornais direcionados para mulheres entre os séculos XIX e XXI, defendida no início deste ano no Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos (Poslin) da Faculdade de Letras (Fale).
Três jornais, criados e editados por mulheres, compuseram o corpus de análise: O sexo feminino, que circulou entre 1873 e 1875; Mulherio, de 1981 a 1988; e Fêmea, de 1992 a 2014. “O modo de fazer jornalístico dos veículos especializados feministas é, em geral, subjetivo e parcial, de modo que é difícil distinguir os gêneros opinativo e informativo”, observa a autora.
Gerlice Rosa destaca que, durante todo o período estudado, os jornais se configuraram como instrumentos da luta feminista, propícios à interação. “Os textos são dialógicos, com palavras de incentivo às mulheres, como forma de validar a luta”, revela.
Com base em postulados teóricos, especialmente da AD, foi realizada análise contrastiva dos três periódicos e exame dos jogos propostos entre enunciadores e destinatários. “Conforme as intenções e valores das instâncias de produção, identidades foram criadas ou silenciadas, a fim de cumprir os propósitos das editoras”, explica a pesquisadora.
Segundo Gerlice Rosa, as modificações nos critérios de noticiabilidade e estratégias discursivas dos jornais evidenciaram que a mulher fragilizada e não emancipada dos anos 1870 cedeu lugar à mulher forte, trabalhadora e cidadã dos anos 2000. “Se no século 19 pouco se falava da possibilidade de inserção feminina no mercado de trabalho, cem anos depois isso se torna uma condição de existência”, afirma.
De acordo com a autora, a visão de formação educacional para as mulheres foi um dos elementos que mais evoluíram no discurso da emancipação propagado pelas publicações feministas. No fim do século 19, O sexo feminino abordava a instrução das mulheres como instrumento para capacitá-las a educar seus filhos e a formar bons cidadãos. Já na década de 1980, a educação ganha perspectiva bem diferente nas páginas de Mulherio, o veículo analisado no período por Gerlice Rosa. “Ela não aparece mais como reivindicação, mas é incentivada a todo momento por meio de publicações de eventos científicos, congressos, palestras e lançamentos de livros relacionados à mulher e a sua atuação social. Esse novo viés surge em todas as edições analisadas da publicação”, explica Gerlice.
Mulher-mãe
Segundo Gerlice Rosa, a imagem da “mulher-mãe” também sofreu grandes mutações discursivas. “Outrora associada somente a um dom divino e angelical, a figura da mãe reaparece, nas publicações mais recentes, vinculada a questionamentos sobre as novas demandas da mulher moderna, visão que inclui seu amparo pelas leis”, sublinha. Segundo a pesquisadora, o percurso do discurso feminista em suas diversas fases parece culminar com a proposta de Fêmea – veículo da ONG Centro Feminino de Estudos e Assessoria (CFemea) – de reservar colunas inteiras à reprodução e repercussão de propostas de leis.
“No fim do século 20, a mulher é vista como capaz de avaliar as conquistas alcançadas e de lutar para ampliá-las, adaptá-las e registrá-las na legislação brasileira. Entre as demandas em questão, figuram a licença-maternidade, a regulamentação dos direitos trabalhistas das empregadas domésticas e o orçamento destinado a políticas para a mulher”, exemplifica a autora. Em sua avaliação, os jornais feministas, cada qual em sua época, tiveram a sensibilidade de retratar e influenciar mudanças na questão feminina ao longo do tempo.
Tese: Noticiabilidade e imagens de si: ser mulher e ser notícia em jornais direcionados para mulheres entre os séculos XIX e XXI
Autora: Gerlice Teixeira Rosa
Orientadora: Ida Lúcia Machado
Defesa: 15 de janeiro de 2016, no Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos