Rankings em perspectiva

Em tempos obtusos, que tal passear numa biblioteca?

“Os livros são para usar.”
(S. R. Ranganathan)

Cada vez mais tendo a acreditar que incentivar passeios, sem nenhum recorte prévio, pelos imensos corredores das nossas bibliotecas espalhadas por esse Brasil desmedido, pode, sim, render grandes surpresas.

Ainda que esse potente equipamento cultural não esteja presente em muitas localidades do país, é de se considerar o grande esforço que muitos agentes da sociedade civil têm empreendido para alterar essa fotografia e contribuir para a capilaridade da implementação desses ambientes informacionais.

Feita essa ressalva, compartilho algumas dessas “surpresas” que muito recentemente têm subsidiado, do meu ponto de vista, razoáveis observações sobre o momento atual do nosso regime político que, em parte, esforça-se por consolidar-se democrático, mesmo atropelando, não raras vezes, o caráter diverso da história e, sobretudo, valendo-se do nosso distanciamento da memória coletiva.

Nesses tempos tão bicudos, parece-me que uma boa pedida seria passear por bibliotecas!

Uma visita desinteressada por corredores de bibliotecas, quem sabe, poderia nos levar até o romance da escritora mineira Ana Maria Gonçalves, intitulado Um defeito de cor? Do jeito que nossos tempos estão turvos pela incapacidade, quase generalizada, de encampar diálogo de modo urbano, penso que a leitura desse romance, de mais de novecentas páginas, muito contribuiria para ponderar argumentos que insistem em preconizar a não existência de regimes escravocratas que perduraram por séculos e cujas cicatrizes formatam e ainda moldarão, por longa data, a constituição da nação brasileira.

Não me assusta pensar que um leitor poderia concluir ser tudo invencionice e, portanto, tendo exercido interpretação marcadamente paranóica, continuar a defender que “esse negócio de tráfico negreiro nunca houve...” Bom mesmo que a arte literária tenha saído exitosa, no romance de Ana Maria, e dado conta de mostrar o núcleo duro do real, por exemplo, na passagem em que nós, leitores, nos enfileiramos com a menina Kehinde, arrancada de sua terra natal, em África, junto com o que sobrou de sua família, e viajamos no porão de um navio, desprovidos de qualquer tratamento digno, em atos perpetrados por outros humanos que, por suas atitudes, duvido muito merecerem essa denominação. Vale muito, de verdade, experienciar essa viagem infeliz narrada pela voz de uma menina singular.

Animados com a descoberta, desinteressada, de Um defeito de cor, alguns passos à frente quiçá nos fariam esbarrar em outro romance, do escritor angolano Boaventura Cardoso, nomeado Noites de vigília! Pensando que isso não teria ocorrido apenas por artimanha do acaso, ao folhearmos o volume, logo saberíamos que a história dos anônimos também dera corpo à pena de Cardoso. Por motivos que poderiam denotar outro ponto de aproximação entre a recente história brasileira e a do país cuja capital é Luanda, também foi necessário amparo na literatura para colocar, na cartela de discurso, outra tonalidade mais disposta a perscrutar as memórias dos que fizeram as várias etapas das lutas de libertação de Angola do jugo opressor do colonizador europeu, sobretudo o português. A leitura dessa obra nos aproximará da história narrada pelos não heróis aos que, sorrateiramente, decretou-se que fossem esquecidos – coisas estranhíssimas que, certamente, não estão nos boletins oficiais da arapuca colonizatória portuguesa.

Esse poder da literatura de flertar com o real, de propor outras feições da realidade e, ao fim, de nos convidar a pensar é, de fato, essencial para o enfrentamento dos tempos, repito, “bicudos”. Circunspecto, vejo-me distanciando-me de mim mesmo, a refletir sobre a boa fatura que um escritor de São Tomé e Príncipe, Sum Marky, ofereceu ao mundo ao lançar-se, corajosa e brilhantemente, na composição de outra faceta do que, na história recente daquela ex-colônia portuguesa, ficara conhecido como o Massacre de Batepá. Não há como não se deixar incomodar pela máquina de desumanidade fomentada pelo poder português, que não titubeou em forjar, com toda a carga de mentira, uma suposta revolta para fazer prevalecer o aparelho de morte lusitano em terras santomenses. Para grande sorte nossa, a andança pelos corredores das bibliotecas pode nos levar ao encontro de Crônica de uma guerra inventada. Esse romance, assim como os dois que já temos em mãos, denunciará e questionará, à exaustão, a potência de perversidade que  sustentou o regime salazarista e, por conseguinte, seus tentáculos no insular espaço posteriormente trabalhado pelo escritor.

Poderia dizer que esses livros, em suas histórias, unem-se por diferentes maneiras, tantas quantas possibilitar o gesto de lê-las. Aqui, diria apenas que demonstram, com clareza inconteste, o quão ardilosas podem ser as tintas que registram os regimes erigidos no aniquilamento do humano por outros humanos. E, de outro modo, essas obras retomam esses lugares de memória para escancarar o perigo de incorrer nos mesmos erros provocados pela ganância, incapacidade de diálogo e, principalmente, pela preguiça de pensar. Como bem disse o velho e sábio curandeiro Sum Clé-Clé, personagem fundamental no romance de Marky: “[...] pensar era a coisa mais importante do mundo...”

Bibliotecário que sou, melhor me parece relembrar uma das leis exaradas por S. R. Ranganathan, pai da Biblioteconomia indiana, segundo a qual “os livros são para usar”. Talvez o “uso” de livros como os que encontramos nesse itinerário ajude-nos a desconfiar de tudo que pretende afastar o humano do humano. A literatura pode abrir nossa mente face à tentativa de sagração da violência e fazer-nos estranhar, assim como fez Sum Clé-Clé, que representantes não se cansem de justificar seus discursos coronelescos de ódio. Eles, embora afirmem, “em voz tonitruante”, que tudo o que praticam é “para o povo”, fazem-no “realmente para agradar a uma estranha trilogia: Deus, Pátria e Família” (MARKY, 1999).

É preciso resistir... e pensar!


Esta página é reservada a manifestações da comunidade universitária, por meio de artigos ou cartas. Para ser publicado, o texto deverá versar sobre assunto que envolva a Universidade e a comunidade, mas de enfoque não particularizado. Deverá ter de 5.000 a 5.500 caracteres (com espaços) e indicar o nome completo do autor, telefone ou correio eletrônico de contato. A publicação de réplicas ou tréplicas ficará a critério da redação. São de responsabilidade exclusiva de seus autores as opiniões expressas nos textos. Na falta destes, o BOLETIM encomenda textos ou reproduz artigos que possam estimular o debate sobre a universidade e a educação brasileira. 

Wellington Marçal de Carvalho / Bibliotecário-documentalista. Docente na Universidade Federal de Rondônia