Muito mais que um quadro na parede
A Revista Literária da UFMG é uma saudade que durou muitos e muitos anos e continua saudosa. Ela, na estante, é mais do que um quadro na parede que ainda dói.
Publicar na Revista Literária, quando estudante, era como ganhar o Oscar, o Pulitzer, o Prêmio Nobel, pisar na lua. Nós, estudantes, nos idos de 60 para 70, década que nunca terminou e continuará desafiando o calendário, sonhávamos com a glória. E glória tinha endereço e código postal. Depois era esperar pelo resultado e torcer.
Quem ganhará? A turma de Direito? Eram fortíssimos: Jaime Prado Gouvêa, Duílio Gomes, Sérgio Sant’Anna, Adão Ventura e outros bambas na arte do escrever. E a turma do Jornalismo? E o pessoal da Medicina, da Economia, da Filosofia? Todo mundo querendo o prêmio. O prêmio maior era ser publicado. Os estudantes que visitaram as páginas da Revista inicialmente viraram realidades, como Luiz Vilela, Luis Gonzaga Vieira, Walden Camilo de Carvalho, Humberto Werneck, José Márcio Penido, Regis Gonçalves, Vladimir Diniz e Plínio Carneiro.
E nós de Letras? Havia o Henry Corrêa de Araújo, que abocanhou os primeiros prêmios das edições iniciais, mas depois largou o barco e passou o legado para a turma do 7º andar da Fafich. Reuníamo-nos em função de um jornalzinho que criamos, o Talupa. No nosso time jogavam Léa Nilce Mesquita, Magda Frediani, Edgar Pereira, Fábio Madureira, Regina de Souza e outros poetas e contistas.
Seremos premiados? Era a pergunta angustiante e ansiosa.
A ditadura fazia alarde e publicávamos poemas-cartazes sem mencionar o autor. Publiquei o poema Diálogo, no quinto número da Revista Literária:
a guerra é antes
o silêncio dúbio
da paz
a bomba é antes
um lindo traço
no azul
o diálogo é antes
um grande conflito
do silêncio
a liberdade é antes
uma grande vontade
de palavra
o agora é antes
uma véspera tardia
do amanhã
O mundo explodia em ditaduras e revoltas. A paz era apenas uma palavra muda no jardim do arbítrio. O inimigo tinha olhos velados e se escondia atrás das portas secretas e perigosas. Nosso alvo, além de recuperar a democracia, era ser publicado pela Revista Literária e pelo Suplemento Literário de Minas Gerais, que saía todos os sábados.
Os anos 60 acabaram. A ditadura continuou mais feroz e infeliz. A literatura era o nosso palanque e passeata. O inimigo continuava o mesmo, e continuamos desafiando com palavras de rebeldia e metáforas o chumbo daqueles anos.
A Revista era editada pelo Serviço de Relações Universitárias da UFMG, e a comissão era nomeada pelo seu chefe, na época, Plínio Carneiro. P. Pontes era seu pseudônimo. Para resguardar a RL, havia um critério estranho: não aceitar trabalhos de cunho político-partidário e temas ofensivos à moral e à religião. Passamos a utilizar uma literatura metafórica e, nas entrelinhas, driblávamos a censura e a ditadura. E surgiram textos fabulosos e mágicos. Havia sempre uma segunda leitura.
Nos anos 70, passei de discente para docente, de selecionado passei a selecionar. Fui convidado a participar da comissão da Revista juntamente com Magda Frediani Martins, minha colega das Letras e do jornal Talupa. E Plínio Carneiro. Formamos um trio belo e poético. Plínio era o “faz tudo”. Era quem punha a Revista na rua. Conseguia a verba para os prêmios e garantia a permanência da publicação.
Naquele número, o sétimo, premiamos Sandra Lyon e Antônio Carlos Gomes da Costa, Regina Lúcia Ferreira Neves, Eugênio Gomes, Danilo Gomes, Ana Cecília Carvalho, Luiz Fernando Emediato.
Em 73, a comissão mudou novamente. Saiu Magda Frediani e entrou o professor e poeta Orlando Bianchini, e os premiados foram quase os mesmos do ano anterior: Ana Cecília Carvalho, Sandra Lyon, Danilo Gomes, Luiz Fernando Emediato e Eugênio Gomes. No ano seguinte, fui substituído pela professora Maria Antonieta Cunha.
Quando foi instituída a Revista Literária, dois de seus idealizadores, Luiz Vilela e Luis Gonzaga Vieira, afirmaram que, se a publicação não tivesse o apoio oficial da UFMG, ela não passaria do terceiro número. Revistas literárias têm vida curta. Nascem da abnegação de alguns, duram até o terceiro número e morrem. Às vezes, atingem o quinto número e desaparecem. Plínio sabia que a Revista Literária da UFMG tinha uma importância transcendental e que ela transcendia a si própria. Ela não morreu após o terceiro número. Durou quase 30 números.
Voltei em 78, e formei novo trio com Plínio Carneiro e Ana Maria de Almeida. Em 83, a Revista saiu da Reitoria e foi para o Centro de Extensão da Faculdade de Letras, que era comandado por Ana Maria de Almeida. Ficamos ela e eu e demos conta do recado. O Plínio foi assaltado por um AVC desavisado que o tirou do ar e o enviou às estrelas.
Novos talentos apareceram: Sônia Queiroz, Antenor Pimenta Madeira, Antonio Barreto, Sergio Coelho Medeiros, Lucia Castello Branco, Sandra Duarte Pena, Francisco de Morais Mendes, Roberto Barros de Carvalho. Na Faculdade de Letras, surgiu um novo Plínio: com garra e competência, Carlos Alberto Marques dos Reis tocou o barco devagar, como no samba do Paulinho da Viola, por longos anos. As comissões variavam. Lembro-me dos professores Valmiki Vilela, Luiz Cláudio Vieira de Almeida e do escritor Carlos Herculano Lopes.
Os anos passaram e continuei, os anos passavam, mas lá estava eu segurando o bastão. Os anos passaram, e fui ficando, ficando, até que veio a pá de cal, e o que era doce acabou. A RL deixou de existir materialmente, mas continua na parede da memória desafiando o tempo e revelando os poetas e contistas que contam e cantam a vida. Eles estão por aí semeando a paz da palavra paz, a liberdade e a vida.
O lançamento do número comemorativo dos 50 anos da RL, nesta semana, representa um triunfo dessa doce memória. Cinquenta anos não são cinco ou nove anos. São cinco décadas da palavra que conta literária e talentosamente a história da Universidade, de Minas e do Brasil.
(Ronald Claver - Professor aposentado do Colégio Técnico da UFMG. Escritor com mais de 20 obras publicadas e vários prêmios conquistados, entre os quais o Prêmio Nestlé e o Cidade de Belo Horizonte)