'Relação entre informação e imaginário é umbilical'
As implicações éticas decorrentes da relação do homem com a tecnologia constituem um dos campos de investigação do historiador e cientista da informação Armando Malheiro, da Universidade do Porto. Neste mês, ele ministrou a conferência O fyborg e a ética da informação: os limites de uma ética antropocêntrica, no âmbito do Programa Cátedras, do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (Ieat).
Malheiro é colaborador do Gabinete de Estudos da Informação e do Imaginário (GEDII), grupo de pesquisa que se vale do conceito de imaginário como objeto de aplicação de uma hermenêutica para compreender os comportamentos informacionais das pessoas. Em entrevista por e-mail ao Portal UFMG, o professor aborda as correntes que divergem sobre as éticas que devem regular o comportamento humano na era da informação, a relação entre imaginário e informação, também objeto de suas investigações, e o fenômeno das fake news, que ele vê como um processo de “descredibilização da verdade”.
A sua conferência abordou a ideia, de Alexander Chislenko, segundo a qual o homem se transformou em um “fyborg”, espécie de “cyborg funcional”, que tem a tecnologia como extensão de si próprio. Isso faz supor que talvez estejamos nos aproximando da era do pós-humano, mas as relações humanas ainda são reguladas por uma ética assentada em bases anteriores. Como “atualizar” essa ética e “adaptá-la” a esse “admirável mundo novo”?
A pergunta é interessante e pertinente, mas complexa e hoje alimenta artigos, capítulos de livros e obras completas dedicados ao tema. Há, entre outros, dois autores que desenham duas éticas da informação que se confrontam: Rafael Capurro, cientista da informação e filósofo, nascido uruguaio, mas residente na Alemanha, e Luciano Floridi, italiano, filósofo e docente em Oxford. Para Capurro, a ética regula e continuará a regular o comportamento moral dos humanos na era da informação. Para Floridi, a ética terá de abranger os “agentes inteligentes”, espécie de “cyborg” que poderá constituir o “pós-humano”. As duas posições não são conciliáveis e projetam uma visão para o futuro que é sempre arriscada. Entre elas, vale a pena situar outro contributo, o do professor António Damásio, neurocientista [português] a trabalhar e a residir há muito nos EUA, para quem a consciência é um atributo biológico, impossível de ser replicada na tecnologia digital. Eu inclino-me para a conjugação da reflexão de Capurro com a pesquisa prospetiva de Damásio. Em reforço do que afirmo, recorro ao livro A revolução do algoritmo mestre (2017), do português a trabalhar academicamente nos EUA Pedro Domingos – sobre ele escrevi uma recensão que sairá no próximo número da revista eletrônica Prisma.Com. Seu trabalho desdramatiza o risco da singularidade, ou seja, de uma alteração singular que faça surgir uma nova “espécie”, mas alerta que tudo depende de nossa vontade.
A princípio, a sociedade da informação, por ser calcada em dados e conhecimento pretensamente objetivos, relegaria a dimensão do imaginário e da magia a um passado já remoto. No entanto, a “sociedade do imaginário” parece coexistir com a sociedade da informação. O fenômeno das fake news, que não é novo, mas ganhou amplitude e escala global com os novos dispositivos eletrônicos e midiáticos, não seria uma manifestação colateral dessa coexistência?
Não sei se as fake news, boato ou fofoca traduzem exatamente essa coexistência do imaginário com a informação. O que me parece mais óbvio é que a relação do imaginário com a informação é umbilical, desde o momento em que as imagens arquetípicas tornam-se representações mentais e emocionais codificadas. Se a informação/conhecimento não tivesse esse componente cognitivo e emocional – e até inconsciente – não haveria relação entre um tópico e o outro, mas, na verdade, há e é forte. Já o problema das fake news tem, no meu entendimento, muito diretamente a ver com o relativismo muito propalado, ou seja, a descredibilização da verdade como valor a preservar nos processos de produção de informação/conhecimento. Quando se crê que cada pessoa tem a sua verdade, daí à legitimação para se fabricar e propalar um boato vai um passo curto. Sabemos que é uma quimera a verdade absoluta e universal, mas também sabemos que a ciência busca a verdade possível, e esta não se compagina com manipulações ou mistificações dos fatos.
A falta de conhecimento e informação sempre foi considerada obstáculo ao progresso e à evolução das sociedades. No século 21, porém, a informação é mercadoria abundante a ponto de o filósofo polonês Zygmunt Bauman afirmar que o problema hoje está mais no excesso do que na falta de informação. Como o senhor analisa esse paradoxo?
Não estabeleço uma distinção de raiz cognitiva entre informação e conhecimento, porque ambas procedem da mesma fonte – o cérebro e a mente humanas. O que há é uma tipologia ampla da informação que vai da mais simples à mais complexa e elaborada – e a que se situa no topo de uma vasta escala é o conhecimento. O que se está a passar é que há muita informação simples, rasteira, unissêmica, como a imagética e icônica, e cada vez menos informação complexificada, sólida e com novidades robustas a que se dá o qualificativo de conhecimento.
[Versão ampliada desta entrevista foi publicada no Portal UFMG, em 7/9/2018]