Matar a si, matar a mãe
Doutoranda da Psicologia sugere em livro que motivação do suicida é oriunda de trauma vivido em relação ao objeto materno
O que motiva o suicida? Que dispositivo de sua psicologia leva o sujeito a cometer autoextermínio? No livro recém-lançado As horas que separam duas mortes: da melancolia ao impulso suicida, Elisa de Santa Cecília Massa, doutoranda em Psicologia da Fafich, sugere uma resposta original para essas questões.
A pesquisadora recorre ao texto Luto e melancolia, de Freud, para argumentar que a agressividade que o eu desperta sobre si se explica pelo fato de haver nele um objeto referencial introjetado, a quem tal ato se destinaria originalmente: o objeto materno, na hipótese da autora, o primeiro objeto de amor do sujeito – responsável mesmo, em princípio, pelo advento da vontade de viver. “A pesquisa me levou a suspeitar que as vivências da infância são determinantes para a compreensão do ato suicida”, diz a pesquisadora.
Para Elisa, uma falha na primeira interação com o objeto materno, ocorrida no início da relação entre o cuidador e o bebê, atuaria no processo de esvaziamento da pulsão de vida e no engendramento da pulsão de morte. “Embora nosso imaginário seja povoado por fantasias sobre a própria morte, esta só pode ser vivenciada pela morte do outro, já que não é possível fazer coexistir a experiência e a própria morte”, explica. Assim, matar a si seria, no âmbito psicológico, o ato de eliminar de si a presença do outro – no caso, a mãe. “O suicídio é um ato endereçado ao objeto, não ao eu”, demarca.
Elisa explica que, naturalmente, tais processos não se dão necessariamente na consciência do sujeito. “Isso aparece na clínica psicanalítica, quando o paciente começa a nos contar sobre suas relações com o chefe, com o pai, com os irmãos, com os amigos, com o cônjuge ou mesmo com a própria mãe. É possível perceber que, em todas essas relações, algumas coisas começam a se repetir”, diz, sugerindo que essas repetições são indicativas de questões próprias do sujeito – relativas, por exemplo, a esse trauma original.
Retorno ao útero
No livro, Elisa também discute o autoextermínio como espécie de retorno ao útero – o túmulo como metáfora. Ou seja, uma forma trágica de o sujeito tentar se reconciliar com a razão inaugural de sua melancolia. A professora Cassandra Pereira França, do Departamento de Psicologia da Fafich, resume o dilema na orelha da obra: “Arcaremos com o peso das inscrições deixadas pelo outro primordial e com a angústia de esperar a morte nos surpreender, ou a golpearemos primeiro, precipitando o retorno ao centro da mãe/terra?”. A professora orientou a dissertação de mestrado de Elisa, que deu origem ao livro.
“É importante ouvir o que é próprio do sujeito e não se defender da sua fala. Para o analista, é difícil ouvir aquilo que os sujeitos melancólicos têm para dizer."
“Escrevi a dissertação tendo como alvo a clínica psicanalítica”, conta a pesquisadora. Mestre e doutoranda em estudos psicanalíticos pela UFMG, Elisa é diretora de Orientação Socioeducativa da Secretaria de Defesa Social de Minas Gerais, que estabelece a metodologia para o atendimento de adolescentes internados em razão do cometimento de ato infracional. “Seja na pesquisa que resultou no livro, seja em meu trabalho, estou interessada nas formas como cada sujeito responde à manifestação do trágico em sua vida. Em alguns casos, os adolescentes que cometem atos graves também estão construindo respostas para essa manifestação”, afirma.
Na clínica psicanalítica de casos de potenciais suicidas, Elisa critica as abordagens “motivacionais”, baseadas no aconselhamento, e sugere a “real escuta” como o melhor instrumento de atenção. “É importante ouvir o que é próprio do sujeito e não se defender da sua fala. Para o analista, é difícil ouvir aquilo que os sujeitos melancólicos têm para dizer. Contudo, muitas vezes são eles que vão indicar uma saída para suas questões”, diz. “É crucial a individualização de cada caso. Por isso, mais que pensar uma teoria do suicídio, desenvolvi um trabalho que busca demonstrar a importância de se escutar o que é próprio de cada sujeito.”
No livro, além da reflexão estritamente teórica, Elisa se vale do filme As horas, de 2002, para discutir a pulsão da morte com base em uma intrigante relação estabelecida entre mãe e filho.