‘Na guerra, a vitória só existe nas macronarrativas’, diz professor do King’s College London
Vinicius Mariano de Carvalho estuda produção artística dos oficiais da FEB
O professor brasileiro Vinicius Mariano de Carvalho, do King's College London (Inglaterra) e da Universidade de Aarhus (Dinamarca), está na UFMG para uma série de atividades no âmbito do programa Cátedras Fundep/Ieat.
Na tarde de hoje, 29, o pesquisador ministrará, na Faculdade de Letras, a grande conferência A participação do Brasil na Segunda Guerra mundial vista pela literatura, música e artes plásticas produzidas pelos ‘pracinhas’ da FEB. O evento será realizado às 13h30, no auditório 1007, e é aberto ao público.
Vinicius Mariano de Carvalho conversou com o Portal UFMG sobre a produção literária, musical e artística desses soldados. Para o professor – que, além de pesquisador, é regente de orquestra –, “transdisciplinaridade é abrir fissuras em discursos demasiadamente sólidos”.
Em meio às respostas sobre suas pesquisas, Vinicius alertou para certa similaridade entre o cenário contemporâneo e o que antecedeu a Segunda Guerra Mundial. “A polarização, a intolerância, os maniqueísmos conduzem à guerra, que é o destino de um caminho em que há a ausência de diálogo", afirma o professor.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
Os brasileiros se alinharam aos Aliados na Segunda Guerra Mundial. Qual a real participação do Brasil nas frentes de combate?
A história da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial é muito negligenciada. Costuma ser disseminada uma visão reducionista dessa participação, como se ela se limitasse a um pequeno grupo de soldados brasileiros que teria chegado já no fim do conflito. Na verdade, 25 mil soldados participaram. Eram pracinhas de todas as partes do Brasil. Houve a participação de um regimento inteiro de Minas Gerais, de índios do Mato Grosso do Sul, de gente da Amazônia, de descendentes de alemães do Rio Grande do Sul. Essa participação, se não era grande proporcionalmente ao que ocorria na Europa, era grande considerando o contexto brasileiro.
Que contribuição artística esses soldados deixaram? Qual é o significado dessa produção?
Em diferentes partes do mundo, há estudos e referências sobre a produção artística dos soldados nas guerras – especialmente na Segunda Guerra Mundial, que, além de ter sido longa, envolveu muita gente. Em razão disso, em várias partes do mundo há livros de literatura produzidos por soldados, poesias da guerra, pinturas de artistas que foram para o campo de batalha e até mesmo músicas compostas durante o conflito, além de outras formas de arte. Eu nunca tinha visto isso ser tematicamente organizado em relação à participação brasileira. Conhecíamos as obras, mas faltava alguém se debruçar sobre essa produção em uma perspectiva temática, para estabelecer um panorama mais amplo de como os soldados brasileiros refletiram artisticamente a participação na Segunda Guerra. E é possível perceber que eles fizeram um tipo de arte que fala menos do país e mais do indivíduo – ou seja, uma arte sobre a experiência individual da guerra.
Como essa experiência individual é ou pode ser análoga à experiência nacional – se é que se pode colocar nesses termos? E como elas se distanciam?
No contexto de uma macronarrativa nacionalista, a arte de guerra normalmente é usada para se vangloriar dos feitos das tropas do país, da sua força. Já no aspecto individual, muitas vezes um elemento crítico vai aparecer. Nem sempre essa reflexão crítica traduz uma compreensão ampla da geopolítica global, mas diz de uma crítica existencial do próprio indivíduo em relação à guerra. É uma crítica que costuma ser ora pessimista, ora humorística.
Quais manifestações artísticas o senhor mobiliza em suas análises?
Eu cheguei a três expressões artísticas que, juntas, me parecem construir uma narrativa. A primeira é a representação nas artes plásticas, em que tomei como paradigma a figura do pintor, gravurista e cenógrafo Carlos Scliar, que já era conhecido quando foi convocado para a guerra, aos 24 anos de idade. Naquela época, Scliar tinha realizado exposições individuais no Brasil, e sua personalidade já tinha certa expressão. Ainda assim, era ainda um artista construindo sua própria identidade expressiva. Scliar vai para a guerra como cabo, na artilharia. Em 1945, com o fim do confronto, ele traz uma longa série de ilustrações em gravuras. O curioso é que, em suas produções, cerca de 200 peças, não há a batalha, não há a face combativa da guerra; o que há é a face do soldado do pós-combate, a população civil, as expressões da paisagem após o combate.
O que chama atenção na produção do Scliar?
As representações que ele faz dos soldados, alguns deles anônimos, outros identificados. São expressões muito fortes, de uma pobreza expressiva facial e, ao mesmo tempo, de uma extrema explosão de expressividade nos olhos. Essa é uma característica muito interessante nas obras do Scliar. Há o soldado que mostra ou não a face, ou sua face aparece quase inexpressiva, enquanto seus olhos surgem procurando por sentido. Não é o soldado posando para o artista: é o soldado lendo uma carta recém-chegada; o soldado deitado no chão, esperando o tempo passar, depois de um dia de trabalho; o soldado junto com seus amigos, sentado em alguma taberna. Isso tudo com um traço muito característico do Scliar, que posteriormente nós iríamos encontrar em outras de suas obras.
Falamos em significado...
Sim, o interessante é notar como essa experiência é marcante para o próprio artista e como ela vai se refletir em sua produção pós-guerra. Hoje, quando se fala no Scliar, ocupa-se uma ou duas linhas com sua vivência da guerra, já que essa participação não se relaciona diretamente com sua formação técnica. Contudo, ela tem muita importância na formação humana desse artista, o que traz consequências para a sua expressão artística.
Por que esse aspecto das biografias dos artistas é negligenciado?
Talvez porque o que esses artistas expressam individualmente não seja interessante à macronarrativa da guerra.
O senhor sugere aqui que, no caso de artistas que participaram de guerras, há uma relação relevante entre esse aspecto de suas biografias e a arte que produziram?
Sim, e que a participação dessas pessoas na Segunda Guerra Mundial é negligenciada em suas biografias. O interessante é perceber que, se a influência artística dessa participação pode ser mínima, a influência existencial é profunda. Participar de uma guerra muda completamente a perspectiva existencial de qualquer pessoa, o que implica uma mudança estética. Isso se aplica a todos os artistas que pesquiso.
O senhor trabalha com mais de um autor de literatura...
Trabalhei com três artistas que me chamaram muito a atenção. Um deles, bastante conhecido, é o escritor judeu [e ucraniano, radicado desde a infância no Brasil] Boris Schnaiderman, que faleceu há poucos meses. Schnaiderman é um personagem interessante, pois chegou com a família fugido da Ucrânia e se apresenta como voluntário à Força Expedicionária Brasileira. Ele escreveu muito tempo depois da guerra. Em 1964, publica Guerra em surdina, um livro de ficção, baseado em sua participação no combate. É um livro incrível, que ecoa essa experiência em uma espécie de literatura de formação, ou melhor, uma literatura de deformação: a deformação do próprio personagem em razão do que vive na guerra.
Como essa deformação se dá?
O personagem inicia sua trajetória com uma série de valores humanistas, éticos. Nas palavras do próprio personagem, o processo da guerra o faz “descer os degraus da existência”. Trata-se de um personagem que vai se desconstruindo moralmente e que está em um conflito constante com a sua moral. Ele está sempre se questionando: é um livro cheio de perguntas. A principal questão em jogo é a percepção do personagem de que a guerra destrói não só o inimigo, mas também o vencedor – no caso, esse soldado que, após voltar como herói, é logo esquecido em relação ao seu ato heroico. Rapidamente ele está novamente se sacudindo nos trens do subúrbio, procurando formas de sobreviver. Esse é um aspecto muito interessante da obra, que reafirma a humanidade do soldado, que, pequena, diminui ainda mais com a guerra. É um livro muito forte, com imagens fortes, mas não explosivas. Não há descrições de batalhas. A batalha descrita é a existencial, a do individuo.
O chavão “na guerra, não há vencedores” parece restar como “moral da história”...
O que fica é a ideia de que, na guerra, a vitória só existe na macronarrativa. Nas micronarrativas, a vitória não pode ser celebrada, pois ela implica essa diminuição existencial do indivíduo.
Que outros autores o senhor pesquisou?
Celso Furtado, uma grande surpresa, em cuja obra essa questão ecoa. Ele vai para a guerra como tenente, já foi com uma formação intelectual sólida, e atua muito no setor de comando da Força Expedicionária Brasileira. Depois disso, ele escreve uma coleção, chamada Contos da vida expedicionária, que é editada apenas naquela ocasião, de forma que muitas vezes nem aparece na lista de suas referências bibliográficas. Celebramos Celso Furtado como um grande economista e sociólogo, um intelectual de impacto gigantesco na formação que se faz de um Estado brasileiro contemporâneo na segunda metade do século 20. Contudo, ele produziu uma série de contos que lhe abririam uma grande carreira de contista, caso também quisesse seguir esse caminho. São ótimos contos, que têm essa característica de não fazerem uma macronarrativa da guerra. Eles projetam essa experiência individual, existencial, com peças que não se encaixam facilmente na macronarrativa. Seus narradores são às vezes personagens locais, às vezes soldados. Na maioria das vezes, eles narram certo entusiasmo pela Europa.
O que essa produção traz de especial?
Há um conto, por exemplo, em que o narrador se mostra abismado com Florença, sua arte, a beleza dos palácios. Ele interage com uma italiana, que faz o contraponto desse entusiasmo. Ela diz algo como: “De que adiantou produzirmos toda essa arte, toda essa beleza estética, se com a mesma mão dessa produção nós produzimos a morte, a guerra?” Com isso, Celso Furtado busca fazer um contraponto a essa ideia de que haveria uma evolução da civilização [simbolizada pela sofisticação artística] que levaria ao fim das guerras. O que ele propõe é quase a negação daquela ideia de que há uma civilidade na arte.
Como ele vai problematizar essa premissa otimista, mas muito corrente, de que a mesma evolução civilizatória que leva a arte a uma sofisticação seria a mesma que levaria a humanidade ao pacifismo?
Se a gente pensar que essa arte é o símbolo de uma evolução civilizatória, o que essa personagem italiana vai dizer é o seguinte: “De que adiantou tudo isso, se agora estamos nos exterminando?” Nesse sentido, o que Celso Furtado diz é que a evolução estética não garante uma evolução existencial, algo que faz eco em uma psicologia freudiana. Se para a macro-história a guerra é o campo de batalha, para a literatura, o campo de batalha é o interior do próprio sujeito. Ele trabalha isso muito bem em seus contos. Ali, a guerra é a potencialização máxima dessa dualidade de sentimentos, do mais humanitário ao mais brutal.
O senhor também estudou o romance de Roberto de Mello e Souza...
O Mello e Souza, irmão do Antonio Candido, serviu em uma das piores unidades em que se poderia estar naquela guerra: a dos sapadores, que tinham a responsabilidade de descobrir e limpar os campos minados. Há uma frase muito bonita e dramática em seu livro, Mina R, recentemente reeditado, em que ele escreve que, para aqueles soldados, cada mina retirada era uma guerra vencida. Estamos aqui falando mais uma vez de um combate individual, em que é preciso lutar para sobreviver antes mesmo de vivenciar o drama do bombardeio, o combate frente a frente com o inimigo. Não é um livro que foi muito comentado; até hoje ele é muito pouco conhecido.
A partir dessas análises, como o senhor entende a guerra? Como aproximá-las da realidade contemporânea, do século 21?
É poética e, ao mesmo tempo, ridícula – dramática – a ideia que Napoleão tinha de “artilharia”, que ele chamava de "último argumento dos reis”. Napoleão vai dizer isso no sentido de que, se você chega a optar por esse “último argumento”, é porque todos os canais de negociação se esgotaram. Nesse sentido, a experiência da guerra é a negação da possibilidade da negociação: é a solução não negociada para os conflitos, uma solução para a impossibilidade de diálogo. A guerra, em si, não é uma situação de maniqueísmo. Talvez o maniqueísmo conduza a ela. Vamos perceber essa relação se compararmos os problemas que o mundo vive atualmente com o contexto que antecede a Segunda Guerra Mundial. Antes da Segunda Guerra, tínhamos muitas imagens como essa, de uma intolerância gerada por uma incapacidade de autocrítica, uma tendência ao pensamento totalitário, que coloca “isso é a verdade” e “isso não é a verdade”. A polarização, a intolerância, os maniqueísmos conduzem à guerra, porque, pensando em uma linha reta, a solução final para a intolerância é a guerra: ela é o destino de um caminho em que há a ausência de diálogo. É nesse ponto que precisamos fazer um “combate preventivo”, digamos assim. A guerra surge nos contextos em que as ideias passam a valer muito pouco.
Além de pesquisador, o senhor é músico. Como a música entra em suas análises?
A FEB levou uma orquestra imensa para a guerra. Eu tive a alegria de conhecer o regente daquela banda ainda quando criança. Eles tocavam para entreter a tropa, tocavam nas paradas, formaturas, enfim, o trabalho que uma banda de música militar faz. Era uma tentativa de imprimir um aspecto de humanidade naquilo que viviam. Havia uma construção muito forte de um espírito de nacionalidade. Eles tocavam a abertura da ópera O guarani, do Carlos Gomes, e Canção do expedicionário, uma bonita canção em homenagem aos pracinhas.
São manifestações artísticas que colaboram para a macronarrativa...
Sim, Canção do expedicionário é exemplo de um conjunto de imagens que permeavam a poesia e a música folclórica e popular brasileira da época. Mas há outros tipos de produção. Anos atrás chegou a mim a cópia de um disco chamado Expedicionários em ritmos, gravado nos anos 60 por um grupo de veteranos da FEB. Nele, as músicas têm outro viés, mais irônico, e contam a experiência da guerra a partir da vivência dos soldados. Não há a dramaticidade dos combates. Algumas das canções são laudatórias das suas unidades e dos comandantes, mas também carregavam certo ar de ironia. Também tive acesso a vários discos de gravações realizadas durante a guerra por um correspondente da BBC com soldados brasileiros. Ele gravava com os soldados e enviava para Londres, e a BBC reproduzia em vinil e transmitia para o Brasil. Esse correspondente, inclusive, fazia programa de calouros com os soldados, e eles apresentavam composições que tinham feito ali, na guerra mesmo. É muito interessante: quando não dispunham de instrumentos, eles os imitavam com a voz. Essas composições refletem o lado humorístico da convivência entre os soldados rasos das tropas. São canções que apresentam uma visão do conflito que não é a do repórter nem a do comandante nem a da macronarrativa geopolítica, mas a da pessoa que enfrentou tudo face a face.
Qual é a contribuição que essa pesquisa faz para o nosso entendimento do que foi a participação brasileira na Segunda Guerra?
Primeiro, ela vem cobrir a lacuna que há sobre essa participação. Em segundo lugar, ela se dá em uma espécie de tributo à memória desses 25 mil soldados, que saíram de toda parte do Brasil para lutar em um ambiente de inverno rigorosíssimo e contra soldados experientes. As obras que esses pracinhas produziram nos revelam experiências individuais que costumam ser silenciadas em outros contextos. Elas retomam aspectos mais existenciais da vivência da guerra, que são intraduzíveis em uma narrativa convencional. Trata-se de uma memória importante, se queremos nos prevenir de cometer novamente aquelas mesmas atrocidades.
Muito já se disse sobre a dificuldade ou mesmo a impossibilidade de se reportar, por meio da arte, situações extremas de guerra – o Holocausto, por exemplo. Até que ponto a arte é capaz de dar conta da violência em sua absurda radicalização?
Essa é uma pergunta demasiadamente complexa de se responder. Essas vivências liminares, do genocídio, por exemplo, estabelecem um dilema ético-estético difícil de ser solucionado. O que eu posso afirmar é que, muitas vezes, esse tipo de discurso artístico acaba se dando muito próximo do discurso apofático. Mas acho que não tenho uma resposta efetiva para a sua pergunta. É uma questão que se coloca em um campo de batalha entre o ético e o estético, em que não há solução fácil, óbvia.
As atividades que o senhor está realizando na UFMG se dão no âmbito do programa Cátedras Fundep/Ieat, que tem foco na transdisciplinaridade. Como o senhor se relaciona com essa perspectiva?
É preciso fazer algumas escolhas na vida, profissionais, práticas, que vão delimitar o nosso lugar epistemológico. Eu acredito na performatividade como forma de aquisição de conhecimento. Assim, se estou ensinando música brasileira, isso não se dará sem fazermos – eu e meus alunos – música brasileira. Se eu estou ensinando o que é a construção do nacionalismo a partir dos anos 20, não vou fazê-lo sem executar, com a minha orquestra, músicas daquele período. Isso é importante em uma percepção fenomenológica do que estamos chamando [na Europa] de estudos brasileiros. São caminhos que me desafiam metodologicamente, que me sugerem combinar epistemologias, respeitando-as e, ao mesmo tempo, desafiando-as. Mas se trata de um desafio. Transdisciplinaridade é abrir fissuras em discursos demasiadamente sólidos. No momento em que as perguntas existenciais mudaram, e o próprio conceito de existência mudou, isso abriu uma fissura no edifício do conhecimento [estabelecido em bases disciplinares]. Essas fissuras só podem ser preenchidas – se é que devem ser preenchidas – se eu sair do meu lugar ontológico.