Pesquisa e Inovação

Trabalho escravo segue praticamente sem punição em Minas Gerais

Em livro, os professores Carlos Haddad e Lívia Miraglia, da Faculdade de Direito, reúnem resultados de pesquisas feitas de 2004 a 2017

Falta de locais adequados para alimentação é uma das ocorrências mais comuns registradas por fiscais do trabalho em áreas rurais
Falta de local adequado para alimentação é uma das ocorrências mais comuns registradas por fiscaisRogério Paiva / Ascom MPT

Na novela O outro lado do paraíso, da Rede Globo, a personagem Sophia, interpretada por Marieta Severo, mantinha os trabalhadores de uma mina de esmeraldas em condições de trabalho análogas às de escravo, o que terminou por lhe render a prisão, ainda que por pouco tempo. Em diversas localidades do território brasileiro, as condições de trabalho retratadas na ficção são de fato uma resiliente realidade – assim como a impunidade dos criminosos.

Só em 2016, quase 900 trabalhadores foram resgatados no Brasil em condições de trabalho análogas às de escravo. “Minas Gerais foi o estado recordista, onde as equipes de fiscalização identificaram 328 trabalhadores em situação semelhante à de escravos”, escrevem os professores da Faculdade de Direito Carlos Haddad e Lívia Miraglia na introdução do livro Trabalho escravo: entre os achados da fiscalização e as respostas judiciais, que acaba de chegar às livrarias.

Disponível nas versões impressa e digital, o volume reúne resultados de investigações realizadas pela Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da UFMG, que presta assistência jurídica integral e gratuita a vítimas desses crimes. Haddad e Miraglia dirigem a clínica. Os pesquisadores criaram no Google um mapa com os locais de Minas Gerais em que auditores fiscais do trabalho constataram, de 2004 a 2017, a ocorrência de trabalho análogo ao de escravo.


Na obra, cuja produção contou com a colaboração dos pesquisadores Lucas Fernandes Monteiro, Marcela Rage Pereira e Marina de Araújo Bueno, os especialistas investigam as articulações entre as principais instituições responsáveis por lidar com o trabalho escravo no país – como o Ministério do Trabalho, a Polícia Federal, o Ministério Público do Trabalho, o Ministério Público Federal, a Justiça do Trabalho e a Justiça Federal –, no sentido de se indicar quais trâmites – da origem ao último ato do processo trabalhista ou penal – as notícias-crimes enfrentam.

Com foco nesses percursos, os autores investigam o abismo existente entre o número de denúncias que chegam a essas instituições e o de julgamentos que de fato ocorrem, assim como a lentidão da tramitação desses processos judiciais. “A morosidade, fator que prejudica a efetividade da prestação jurisdicional, é problema antigo, mas que não tem suas causas investigadas a fundo, o que contribui para a perpetuação do problema”, explicam. Na obra, Haddad e Miraglia analisam ainda o conteúdo dos relatórios elaborados por auditores fiscais do trabalho de 2004 a 2017, buscando compreender a evolução do conceito de “trabalho escravo” no país, as formas de manifestação do fenômeno e os tipos de atividade em que mais se constatou sua ocorrência.

Pesquisa diagnosticou a fragilidade dos mecanismos jurídicos existentes para a determinação objetiva do trabalho escravo: entre 2004 e 2017, menos da metade das denúncias recebidas pela justiça foram confirmadas pelos auditores fiscais que foram a campo
De 2004 a 2017, menos da metade das denúncias recebidas pela justiça foram confirmadas em campo Rogério Paiva / Ascom MPT

Entre a lei e a justiça, um gargalo
Os elementos legais que configuram o trabalho análogo ao de escravo estão estabelecidos no artigo 149 do Código Penal e na Lei 10.803, que o modificou em 2003. “A lei foi importante para o enfrentamento à escravidão, pois, anteriormente, o tipo penal era apresentado de forma sintética e não fornecia elementos suficientes para identificação das formas pelas quais se reduz o trabalhador a tal condição [na contemporaneidade]”, escrevem os autores.

Nos textos, são elencadas quatro formas de se reduzir um trabalhador à condição análoga à de escravo: submissão a trabalhos forçados, submissão a jornadas exaustivas, sujeição a condições degradantes de trabalho e restrição da locomoção em razão de dívidas contraídas com o empregador. Além disso, o artigo 149 afirma que incorre no mesmo crime quem cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de seus documentos ou objetos pessoais, com o objetivo de retê-lo no ambiente laboral. “É nítida a importância da inovação legal ocorrida em 2003, no sentido de justificar a tipificação do ilícito e proteger a dignidade da pessoa humana”, escrevem Carlos Haddad e Livia Miraglia.

No entanto, essa legislação tem sido incapaz de promover uma mudança dos paradigmas trabalhistas no Brasil, e o caso de Minas Gerais é emblemático. De 373 fiscalizações realizadas no estado de 2004 a 2017, motivadas por denúncias, constatou-se trabalho escravo em apenas 157 casos, o que já sugere a fragilidade dos mecanismos jurídicos de identificação objetiva da prática. Em relação a esses 157 casos, foram instaurados apenas 118 inquéritos policiais, que, por sua vez, resultaram no ajuizamento de não mais que 79 ações penais.

Como consequência dessas ações, 35 sentenças foram proferidas, e estas levaram a apenas 14 condenações, envolvendo 21 réus. “Somente três dessas decisões transitaram em julgado”, relatam os pesquisadores. “Em um dos processos, consumou-se a prescrição retroativa da pretensão punitiva. No segundo processo, foram aplicadas multa e pena restritiva de direito. No terceiro caso, expediu-se mandado de prisão para execução da pena de quatro anos e seis meses de reclusão.” 

Resumo da ópera: os 157 casos de trabalho escravo reportados pelos auditores fiscais resultaram em uma única prisão.

No Brasil, condições de trabalho análogas às de escravo são recorrentes na colheita de cana
Condições de trabalho análogas às de escravo são recorrentes na colheita da canaRogério Paiva / Ascom MPT

Público versus privado
A discrepância entre a entrada de denúncias e a saída de punições evidencia as limitações do combate ao trabalho escravo no país. “Existe um grande funil entre os casos de trabalho escravo constatados pelos auditores fiscais e aqueles criminalmente punidos de forma definitiva”, escrevem os pesquisadores. 

O dado chama ainda mais atenção por causa da controversa portaria publicada em outubro, pelo presidente Michel Temer, que reunia um conjunto de regras que flexibilizavam os parâmetros estabelecidos pelo artigo 149 do Código Penal e transferiam para o âmbito político decisões que por natureza competem à esfera técnica.

A portaria condicionava a caracterização do trabalho escravo (ou do trabalho forçado, da jornada exaustiva e da condição degradante) à restrição de liberdade de locomoção da vítima, o que não consta como obrigatório no artigo 149 do Código Penal. Além disso, atribuía ao ministro do Trabalho – e não mais a sua equipe técnica – a inclusão de nomes na chamada “lista suja”, que reúne empresas flagradas na prática de trabalho em condições análogas às da escravidão.

Na prática, as mudanças dificultariam ainda mais o combate ao trabalho escravo no Brasil, atendendo a uma antiga demanda da bancada ruralista no Congresso Nacional, interessada em flexibilizar as condições de trabalho em áreas remotas do país. Na ocasião, houve uma forte reação de setores da sociedade que culminou com a suspensão da portaria pela ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, por violar acordos internacionais celebrados pelo Brasil e a própria Constituição. Em razão da mobilização, no dia 28 de dezembro foi editada nova portaria (Portaria MTB nº 1.293/2017), que não incorria nos problemas apontados na versão anterior.

Escravidão contemporânea
Apesar da tensão que marca o cenário doméstico, Carlos Haddad e Lívia Miraglia explicam no livro que o problema do trabalho escravo não é local: estima-se que, no mundo, 40 milhões de pessoas sejam vítimas das novas formas em que a escravidão se manifesta na contemporaneidade. “Em 2016, foram identificadas 66.520 vítimas de tráfico de pessoas em todo o mundo”, escrevem os coordenadores do volume. “Além disso, 21 milhões de pessoas são vítimas de trabalho forçado” e “1,2 milhão de crianças são traficadas todos os anos”, apontam.

Auditor fiscal do trabalho conversa com trabalhadores em colheita de cana no extremo sul da Bahia, em novembro de 2017. Falta dos equipamentos de proteção individual exigidos e de locais adequados para alimentação foram alguns dos problemas encontrados durante a fiscalização
Fiscal do trabalho conversa com trabalhadores em colheita de cana no extremo sul da BahiaRogério Paiva / Ascom MPT

Força-tarefa acadêmica
Várias teses e dissertações defendidas na UFMG nos últimos anos tratam do trabalho escravo na contemporaneidade. Na tese A justiciabilidade dos direitos sociais nas Cortes Internacionais de Justiça: em busca da proteção efetiva do sujeito trabalhador na contemporaneidade, Platon Teixeira de Azevedo Neto faz uma análise do arcabouço normativo internacional relativo aos direitos sociais (com foco nos laborais), de forma a desconstruir os discursos liberais arrefecedores dos parâmetros de proteção. O trabalho foi defendido no fim de 2016.

Na dissertação Construção e desconstrução da lei: a arena legislativa e o trabalho escravo, defendida no início do mesmo ano, Lilia Carvalho Finelli busca esclarecer os processos de construção e desconstrução das leis. Visando colaborar para que se evite o retrocesso de direitos sem o conhecimento da sociedade, a pesquisadora analisa os interesses políticos que visam estabelecer o trabalho em condições degradantes e a jornada exaustiva como conceitos alheios à ideia de trabalho em condições análogas às de escravo. Em alguma medida, a dissertação antecipava a discussão política que no fim de 2017 resultaria na já citada portaria flexibilizadora da legislação sobre o tema.

Priscila Martins Reis, por sua vez, no trabalho de mestrado Tráfico de seres humanos para exploração laboral: análise crítica dos mecanismos jurídicos para enfrentamento do problema em âmbito internacional e no Brasil, identifica a necessidade de adequar os mecanismos de enfrentamento ao tráfico de seres humanos para que não seja encarado apenas como questão de polícia. Defendida em 2014, a dissertação destacou a relevância de se abordar o tema sob a perspectiva dos direitos humanos e da adoção de políticas públicas de erradicação da pobreza e redução das disparidades sociais, fonte primária do problema.

Na dissertação Pela efetividade do trabalho decente no campo: uma análise de mecanismos alternativos para o combate ao trabalho em condição análoga à de escravo, defendida em 2011, Mariana Martins de Castilho Fonseca analisa as manifestações do trabalho escravo no meio rural e defende a possibilidade do confisco de bens como mecanismo de combate a essa prática criminosa. “Muito embora o ordenamento jurídico nacional apresente diferentes alternativas de enfrentamento ao crime previsto no artigo 149 do Código Penal, a pesquisa mostrou a insuficiência de tais medidas”, escreve Mariana Fonseca em seu trabalho.

No fim de 2017, Carlos Haddad ainda publicou, em parceria com Rebecca Scott, da Universidade de Michigan, e Leonardo Augusto Barbosa, analista legislativo na Câmara dos Deputados, o artigo How does the law put a historical analogy to work?: defining the imposition of “a condition analogous to that of a slave” in modern Brazil. Nele, é abordada a “guerra de palavras” travada entre defensores dos Direitos Humanos, de um lado, e governantes e lobistas, de outro, no que diz respeito à definição das questões relativas ao trabalho escravo no país. No cerne dessa guerra está, entre outras, a terminologia “condição análoga à de escravo”. Estabelecida pela redação da Lei 10.803/03 como substituta para a ideia estrita de “escravidão”, a expressão vem colaborando para enquadrar criminalmente situações que, antes, não se conseguia judicializar.

Livro: Trabalho escravo: entre os achados da fiscalização e as respostas judiciais
Coordenação: Carlos Haddad e Lívia Miraglia
Colaboração: Lucas Fernandes Monteiro, Marcela Rage Pereira, Marina de Araújo Bueno
Editora Tribo da Ilha (site para compra: www.ajajus.com.br)
296 páginas / R$ 70

[Versão reduzida desta matéria foi publicada na edição 2007 do Boletim UFMG]

Ewerton Martins Ribeiro