O efeito-vizinhança
Tese defendida na Escola de Arquitetura propõe metodologia para avaliar impactos de empreendimentos urbanos sobre a população
O arqueólogo e historiador da arte italiano Salvatore Settis identifica três formas de uma cidade morrer: ela pode ser destruída por um inimigo cruel (a exemplo da africana Cartago, devastada por Roma); subjugada étnica e culturalmente pelo inimigo (como ocorreu com Berlim, depois da Segunda Guerra, pela então União Soviética); ou pode, ela própria, devastar-se em sua memória, valores, arquitetura e relações humanas (o caso de Atenas).
Na tese de doutorado, O Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) e seu potencial como ferramenta de planejamento, defendida no Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo (NPGAU), o engenheiro Gerson José de Mattos Freire apresenta metodologias para o estudo dos efeitos de empreendimentos urbanos que visam colaborar justamente para que as cidades contemporâneas não incorram na autossabotagem prevista na terceira forma de destruição descrita por Settis. As metodologias investigadas por Gerson de Mattos Freire aumentam a qualidade do prognóstico sobre os possíveis impactos – culturais, sociais, econômicos – que um empreendimento pode exercer sobre a população e sobre as relações que seus integrantes estabelecem entre si e com o espaço urbano.
Em seu trabalho, o pesquisador propõe que se passe a considerar, como ferramenta de política de gestão urbana, uma Avaliação Estratégica de Vizinhança, executada em conformidade com os planos diretores municipais e outros de escala mais ampla do território. Essa avaliação se tornaria possível por meio de um aprofundamento do Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), análise multidisciplinar extraída das Avaliações de Impacto Ambiental (AIA) que possibilita demonstrar como seria possível aumentar a eficiência e a utilidade para a sociedade de um empreendimento de impacto em meio urbano.
O objetivo do EIV é mapear previamente os efeitos positivos e negativos que uma intervenção urbana terá sobre o equilíbrio estabelecido pela população residente na área. "Potencialmente, uma ferramenta como essa possibilita antecipar os impactos gerados por empreendimento específico, favorecendo a proposição de medidas mitigadoras e compensatórias coerentes com esses impactos, caso o licenciamento seja autorizado", diz.
No Brasil, diz o pesquisador, empreendedores realizam, de iniciativa própria, apenas estudos de viabilidade técnica e econômica, pouco se interessando pelos impactos sobre a coletividade. "O ato de planejar as cidades no Brasil tem sido, quase sempre, lutar contra as forças de mercado e a ignorância, conviver com a falta de verbas e de pessoal qualificado e, no mais das vezes, contra seus efeitos deletérios combinados", sustenta o pesquisador.
No que diz respeito à aplicação dos EIV, Gerson de Mattos explica que, hoje, eles ainda são usados simplesmente como recursos pro forma, dedicados apenas a aprovar ou não uma proposta de empreendimento, em vez de serem mobilizados como ferramentas para promover a ampla discussão sobre o planejamento territorial, o que inclui o uso de pesquisas de percepção. "É muito importante que a população participe do processo de tomada de decisão, e a pesquisa de percepção, mesmo com todas as suas subjetividades, é uma forma funcional de dar voz às pessoas", defende.
O caso da Lagoinha
Em sua análise, Gerson de Mattos tomou como estudo de caso a "requalificação" operada pela Prefeitura de Belo Horizonte na região da Lagoinha (Operação Urbana Consorciada Antônio Carlos/Pedro I/Leste-Oeste). Entre outubro e novembro de 2014, o pesquisador aplicou pesquisa de percepção sobre aspectos relacionados à vizinhança e aos impactos percebidos em relação ao empreendimento. Os resultados obtidos foram comparados com os coletados no EIV realizado antes da requalificação.
"[Nos meios oficiais], ainda se fala muito na especificidade dos laços sociais da Lagoinha, como a boemia. Contudo, a população já não tem mais essa visão romântica. Hoje, ecoa-se um passado que não sobrevive por lá", diz. "Houve um processo de ‘desassociação’, que teve como marcos as mudanças no complexo viário e a demolição do mercado que existia atrás da rodoviária. Esses empreendimentos contribuíram para detonar a paisagem cultural", afirma.
No Brasil, o EIV foi normatizado pelo Estatuto da Cidade, lei de 2001 que estabelece as diretrizes da política urbana do país e que tem como base o planejamento participativo, uma "gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano". Contudo, Belo Horizonte ainda é uma das poucas cidades brasileiras em que as decisões sobre empreendimentos urbanos passam por um conselho de política urbana. "Na maioria dos municípios, a prefeitura autoriza o que bem entende, e a população só fica sabendo das obras quando elas começam", afirma.
Gerson de Mattos alerta para o risco de se autorizar a execução de obras que resultem na expulsão de parte da população e o desmonte das relações socioculturais. "Isso pode contribuir para uma deterioração da região em seus aspectos tangíveis e, principalmente, intangíveis", avalia o autor.
Tese: O Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) e seu potencial como ferramenta de planejamento
Autor: Gerson José de Mattos Freire
Orientadora: Fernanda Borges de Moraes
Defesa: 2015. Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo (NPGAU) da Escola de Arquitetura