Boletim
Estrelas e Poesias
Formulações sobre o Urbano
Pesquisa do Cedeplar promove diálogo entre visões clássicas e contemporâneas acerca do mundo marcado pela urbanização
O filósofo francês Henri Lefebvre enxergava a emergência virtual de uma sociedade urbana induzida pela própria industrialização, cuja lógica transformou uma obra coletiva (a cidade) em mercadoria. Mas ele apostava que a diferença e o encontro prevaleceriam sobre a força da indústria. Cerca de 40 anos depois, dois autores americanos – Neil Brenner, do Laboratório de Teoria Urbana de Harvard, e Christian Schmid, do Instituto Suíço de Tecnologia (ETH) – lideram uma agenda que retoma o tema. Para eles, concentrar na cidade as reflexões sobre o urbano é insuficiente, uma vez que o seu domínio extrapola os arranha-céus das metrópoles.
“O economicismo não dá mais conta, os parâmetros passam a ser definidos pela natureza e pela participação das pessoas no planejamento”
Interessado nos diálogos entre formulações clássicas e contemporâneas mais relevantes sobre a questão, o economista Rodrigo Castriota empreendeu pesquisa que culminou em dissertação defendida neste ano no Cedeplar, da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG (Face). E ele conclui a investigação enfatizando a utopia concreta, do possível e da ação, que não esteja mais baseada na maximização. “O economicismo não dá mais conta, os parâmetros passam a ser definidos pela natureza e pela participação das pessoas no planejamento”, afirma Castriota.
O pesquisador recupera as teses desenvolvidas por outros dois intelectuais que ele define como clássicos, ao lado de Lefebvre. O primeiro é o americano Edward Soja, que reafirmou o lugar central do espaço na teoria social crítica. Castriota lembra que ele contestou a associação exclusiva de conceitos como ciclo, dinâmica e evolução à ideia de tempo – e incluiu o espaço como dimensão fundamental nessa discussão.
Outra referência para o trabalho de Rodrigo Castriota é o professor Roberto Monte-mór, da Face. “Quando estudou a ocupação da Amazônia, há mais de 30 anos, Monte-mór criou o conceito de urbanização extensiva, demonstrando como o tecido urbano se estende para todo o território nacional. Mas não se trata de uma extensão física, simplesmente. É um processo excludente e violento, que inclui desmatamento e genocídio de populações tradicionais. Nesses casos, há um choque de ‘tempos espaciais’, diferença de séculos à distância de poucos metros”, conta Castriota. Por outro lado, lembra o pesquisador, a urbanização também ajudou a produzir a politização do território. Índios, seringueiros, sem-terra, campesinos finalmente se organizaram e se associaram politicamente para reivindicar seus direitos. “A problemática urbana havia-se estendido para todo o território”, observa Castriota.
‘Citadismo’
O pesquisador do Cedeplar salienta que Brenner e Schmid também estão preocupados com o “citadismo”, o olhar exclusivo sobre as cidades na investigação de questões urbanas. Essa “obsessão” tem duas implicações negativas, segundo Castriota. “Eleger a cidade como terreno privilegiado para estudo e prática obscurece a realidade de que cidade é ideologia, que contém as representações do funcionamento do capitalismo, ou seja, serve a interesses específicos”, diz ele, acrescentando que o citadismo esconde paisagens operacionalizadas como Carajás, no Pará. “Afinal, Carajás é Pará ou São Paulo?”, provoca, chamando a atenção para o problema de se insistir, nos dias de hoje, na distinção entre campo e cidade.
À semelhança dos teóricos clássicos evocados por Rodrigo Castriota, Brenner e Schmid preferem investigar como a urbanização coloniza territórios, na busca da homogeneização. “E eles e outros pesquisadores, embora marcados pela perspectiva euro-americana, começam a dar sinais de disposição para o diálogo com a crítica a essa perspectiva”, informa Castriota. “Durante muito tempo, os estudos urbanos tomaram como base grandes cidades como Chicago e Los Angeles. Não há problema na viagem das teorias do Norte global para o Sul global, mas por que não levar para o Norte possibilidades vislumbradas no Sul?”, indaga o pesquisador da Face.
É hora, na avaliação de Castriota, de o olhar euro-americano compreender alternativas emancipatórias indicadas pelo hibridismo e pela complexidade revelados pelo processo de urbanização extensiva em países da África, da Ásia e da América Latina. Ele retoma a abordagem da utopia concreta de Lefebvre. “A contribuição do Sul dialoga com a utopia, quando mostra caminhos diferentes, como o planejamento urbano que dá voz às comunidades e a economia popular e solidária”, afirma o pesquisador.
No momento, Rodrigo Castriota encaminha seus estudos de doutorado para a teorização e o trabalho empírico acerca da interação do espaço urbano estendido com o espaço digital – investigando, por exemplo, a internet na Amazônia. Ele acredita que existe uma nova rodada de urbanização que é informacional. “Haverá mais colonização ou a internet pode produzir novas possibilidades emancipatórias?”, questiona, indicando o rumo das pesquisas que planeja desenvolver nos próximos anos.