Boletim

Nº 1933 - Ano 42 - 21.03.2016

Violência e Sonhos

Pegadas no gelo

Investigação sobre práticas de calçar dos lobeiros-baleeiros que estiveram na Antártica marítima no século 19 aprofunda a compreensão de

A história dos fluxos humanos para a Antártica, desde o século 18, é contada pelos atores que exploraram o continente motivados por pretensões políticas e de exploração de recursos naturais. Mas existem grupos que foram negligenciados pela história oficial nessa trajetória de conquista territorial. Entre eles, o dos caçadores de mamíferos marinhos, objeto de investigação que resultou na tese Os sapatos dos lobeiros-baleeiros: práticas de calçar do século XIX nas ilhas Shetland do Sul (Antártica), defendida em 2015 por Gerusa de Alckmim Radicchi, no Programa de Pós-graduação em Antropologia da Fafich.

“A pesquisa se justifica pelo esforço de reconhecimento desses atores considerados pela história oficial como menores”, comenta a autora. Foram abordados três grupos de materialidades relacionadas ao calçar (o corpo, o calçado e a Antártica na condição de espaço vivenciado), em diálogo com as influências sócio-históricas e culturais. “Partindo das premissas teórico-metodológicas já levantadas para o tema das corporalidades, abordei outras questões relacionadas ao estudo dos vestígios de calçados e analisei parte do acervo coletado na Antártica”, relata Gerusa Radicchi.

“A pesquisa se justifica pelo esforço de reconhecimento desses atores considerados pela história oficial como menores”

A análise se deu nas escalas contextual (histórica) e específica (centrada no caso dos lobeiros-baleeiros). A produção dos calçados foi tema do primeiro capítulo, enquanto seu uso foi abordado no segundo. Para a autora, relacionar essas instâncias do pensamento é necessário para contextualizar os grupos de trabalhadores conforme o sistema de crenças, valores e representações peculiares de uma época ou grupo. “Uma vez que o corpo é a primeira instância de interação e apropriação do mundo, as corporalidades têm maior importância nos estudos sobre as identidades dos que chegaram à Antártica”, diz Gerusa. 

Uso intenso e reparos

A pesquisa seguiu o enfoque crítico proposto pelo projeto Paisagens em branco: arqueologia histórica antártica – do qual fazem parte acadêmicos da UFMG –, que se encarrega de mapear e escavar sítios arqueológicos concentrados principalmente nas Ilhas Shetland do Sul, na Antártica.

Como apurado durante a pesquisa, a experiência dos caçadores no continente, ao longo de um ou mais anos de viagem, implicou uma série de transformações importantes em suas corporalidades e suas identidades – e os calçados foram direcionadores neste processo. “Os modelos e a forma de utilização sinalizam produção em massa e consumo padronizado. Eles trazem marcas de intenso uso e reparos. O pequeno tamanho dos calçados pode ser uma evidência da baixa faixa etária dos caçadores”, enumera a autora.

Detalhe de sapato do século 18, na preparação em campo para transporte
Detalhe de sapato do século 18, na preparação em campo para transporte Acervo Leach

Sobre o contexto da produção de sapatos no século 19, as amostras permitem inferir que os sapatos, de boa qualidade, foram feitos artesanalmente – não há evidências de uso de máquinas de costura e outras tecnologias mais avançadas. A vida no mar ou nos acampamentos era exigente e arriscada, e os lobeiros-baleeiros deveriam adquirir habilidades e alargar os limites da tolerância. Isso envolvia conflitos e adaptação, implicando mudanças até na maneira de vestir”, explica Gerusa. “Os sapatos não eram adequados para umidade excessiva, frio, calor, chuva, maresia etc. São modelos simples e tradicionais, de cano baixo, com amarração frouxa, feitos em couro e com a sola presa ao cabedal por costura. Remendados e reparados, os sapatos foram utilizados até a exaustão na Antártica.”

Grande ‘freezer’

Como ressalta o professor Andrés Zarankin, orientador da dissertação e coordenador do projeto, graças a suas características ambientais, a Antártica funciona como um grande freezer. “O ambiente é capaz de preservar objetos orgânicos que, em outros lugares do mundo, desapareceriam em dez anos.” Ele lembra que a arqueologia é uma ciência democrática porque trabalha com aquilo que todo ser humano é capaz de produzir: objetos, vestígios e lixo. “A história contada nos documentos muitas vezes deixa de fora as pessoas comuns. A maioria dos operários na Antártica não sabia ler nem escrever”, comenta. 

Acervo Leach

O professor acrescenta que são raríssimos os estudos dessa natureza na América Latina, e o trabalho de Gerusa serve como referência metodológica. “Ela oferece informações importantes sobre como trabalhar com esse tipo de artefato e que podem orientar estudos de outros arqueólogos. Somado a outras linhas de evidências, o trabalho se torna extremamente relevante para destrinchar a vida das pessoas comuns e reescrever a história da Antártica”, diz Zarankin. Outros pesquisas no âmbito do projeto têm com alvo a alimentação dos caçadores e como os operários percebiam o tempo o organizavam seu trabalho na Antártica. 

Dissertação: Os sapatos dos lobeiros-baleeiros: práticas de calçar do século XIX nas ilhas Shetland do Sul (Antártica)

Autora: Gerusa Alckmim Radicchi

Orientador: Andrés Zarankin

Defesa: 2 de junho de 2015, no Programa de Pós-graduação em Antropologia

Matheus Espíndola