Boletim

Nº 1935 - Ano 42 - 03.04.2016

Tudo em família

Uma história oculta da cachaça

Investigação sobre produção e consumo das aguardentes nas Minas Gerais setecentistas revela aspectos da sociedade colonial

A cachaça, bebida derivada da cana-de-açúcar, influenciou significativamente o processo histórico da capitania mineira. A ela, podem ser associados conflitos, desordens e descaminhos ao longo século 18. Além disso, a bebida foi componente essencial de controle social e tributário. Havia também quem a considerasse fundamental à dieta nutricional e à cura de muitas enfermidades. 

Essas e outras premissas foram detalhadas na dissertação De cabeça de porco à bebida de negro: um estudo sobre a produção e o consumo da aguardente nas Minas Gerais no século XVIII, defendida por Valquíria Ferreira da Silva no Programa de Pós-graduação em História, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) da UFMG.

“O trabalho partiu da ideia de que a experiência concreta da sociedade colonial mineira só poderia ser apreendida se fosse considerada em suas múltiplas dimensões. Para isso, procurei perceber como os interesses e as ações dos agentes sociais se combinavam, colidiam e se interpenetravam quanto à produção, circulação e ao consumo das aguardentes nas Minas setecentistas”, explica a autora. “Considerando aspectos da política e da administração setecentista do Império, procurei esmiuçar, na região mineradora, a história oculta da cachaça.”

Estancos e meias patacas

Valquíria abre o trabalho com uma reflexão sobre as ações da Coroa portuguesa. “Com base nas leis, analisei o cotidiano repleto de conflitos e desregramentos”, revela a pesquisadora, observando que as prerrogativas administrativas se moldavam conforme as necessidades da metrópole. “Com uma das mãos, a Coroa autorizou a construção de engenhos e a suspensão de estancos e meias patacas, impostos relativos à entrada e circulação do produto na colônia. Com a outra, instituiu vários outros ­impostos”, exemplifica.

No segundo capítulo, a pesquisadora relata onde os produtores se encontravam, como e para quem produziam. Inventários post mortem, testamentos, declarações da produção e manuais de feitura foram as bases documentais. “Apurei peculiaridades como a pulverização da fabricação, representada pela imensa quantidade de pequenos e médios produtores. Havia poucos grandes produtores”, comenta Valquíria. 

Também veio à tona a coexistência de qualidades diferentes de aguardentes produzidas na capitania: aguardente de cabeça, aguardente da fraca, aguardente proveniente da garapa e aguardente do melado. Por elas, eram cobrados valores diferenciados, estimulando um mercado consumidor diverso.

Escravo vendedor de caldo de cana, na obra de Joaquim  Lopes de Barros (1840)
Escravo vendedor de caldo de cana, na obra de Joaquim Lopes de Barros (1840) Joaquim Lopes de Barros

Ambulantes e lojas

Valquíria Ferreira explorou ainda o cenário da lida com a cachaça por autoridades, comerciantes e consumidores. A leitura de 19 autos de achadas (inquéritos decorrentes da fiscalização dos morros) mostrou que personagens como o preto vendedor de caldo de cana, que levava um barril sobre a cabeça e segurava os copos de medida, também estiveram presentes na região mineradora – embora essa figura fosse mais ligada ao cotidiano de venda do produto no Rio de Janeiro. 

“Os focos dessa parte do trabalho foram os artifícios utilizados pelos vendedores ambulantes, especialmente os que transitavam ilegalmente pelos morros das urbes mineradoras negociando bebidas e comidas, além das lojas estabelecidas nos centros dessas localidades, onde a bebida era comercializada legalmente”, conta Valquíria. 

A autora esclarece que os documentos examinados apresentaram situações paradoxais em relação aos diferentes tipos de bebida produzidas na capitania. “O termo ‘cachaça’ foi recorrente nos autos de achada e nas listas de almotaçarias [tabelamento de preços de produtos diversos], mas quase ausente nas cartas de doação de sesmarias, nos requerimentos para levantar engenhos e nas declarações das vendas ao governo, onde predominou o termo ‘aguardente’. No entanto, mesmo sendo associada de forma depreciativa aos negros e cativos, comprovou-se que a ‘cachaça’ também esteve presente nos copos de outras camadas da sociedade mineira setecentista, sendo mesmo utilizada em curas de doenças”, explica a autora.

Ainda sobre essa aparente contradição, Valquíria constatou que, se nas Minas setecentistas predominou o caráter pejorativo atribuído à cachaça, bem diferente foi o destaque conferido à bebida pelo príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied. Em viagem ao Brasil no ano de 1815, ele, de certa forma, anunciou o status que a bebida alcançaria nos dias atuais: “Entre tantos tipos de aguardente, a melhor de todas, vinda da Bahia, [era a] cachaça”.

Dissertação: De cabeça de porco à bebida de negro: um estudo sobre a produção e o consumo da aguardente nas Minas Gerais no século XVIII
Autora: Valquíria Ferreira da Silva
Orientadora: Júnia Ferreira Furtado
Data da defesa: 2 de setembro de 2015, no Programa de Pós-graduação em História

Matheus Espíndola