Filosofias africanas: para além do epistemicídio acadêmico
A ideia de que o país foi construído pela mistura de “três grandes raças” (negra, indígena, branca), reproduzida na sociedade brasileira, está na base do mito da democracia racial representado pelo mulato-como-a-cara-da-nação. Contudo, esse ideário da mestiçagem reproduz um discurso que tende a apagar tudo aquilo que foge à herança europeia, haja vista as históricas políticas de branqueamento -baseadas no incentivo à imigração do europeu e no constante massacre da população negra jovem, o que reduz as valiosas contribuições africanas e indígenas a notas de pé de página na narrativa histórica branco oficial.
Destarte, o modo de perceber as filosofias africanas e indígenas está intimamente ligado à condição desses povos em nossa sociedade, visto que os mais de 300 anos do processo de escravização, concomitante ao exercício de construção de uma infundada inferioridade negro-africana, influenciaram a maneira de se pensar o continente-primeiro. A nós é ensinado (des)conhecer a África − mesmo nos espaços legitimadores do saber − apenas após a invasão europeia. Há, pois, um apagamento proposital dos conhecimentos vindos da África, num contínuo “espistemicídio” das filosofias negras.
Como o conhecimento e a sua manutenção dependem do modo como dele nos apropriamos diariamente, a iniciativa de introduzir na grade curricular disciplinas que abordam saberes relativos aos universos das leis 10.639/03 e 11.645/08 é um importante passo para uma universidade que se pretende igualitária e capaz de refletir a pluralidade da sociedade brasileira. Assim, as disciplinas Catar folhas: saberes e fazeres do povo de axé e Edição de textos sonoros, da Formação Transversal em Saberes Tradicionais, contestam-ocupam espaços que a nós foram negados.
Sob a responsabilidade do docente Edgar Rodrigues Barbosa Neto, da FaE, a disciplina Catar folhas: saberes e fazeres do povo de axé foi ministrada por mestres das nossas tradições, evidenciando o quanto nossos conhecimentos são plurais. Pelas mãos de Pedrina, capitã do congado, fomos introduzidos aos saberes do povo congadeiro e pudemos (re)significar as crenças ancestrais frente à chibata da opressão do processo escravagista.
Como o conhecimento e a sua manutenção dependem do modo como dele nos apropriamos diariamente, a iniciativa de introduzir na grade curricular disciplinas que abordam saberes relativos aos universos das leis 10.639/03 e 11.645/08 é um importante passo para uma universidade que se pretende igualitária e capaz de refletir a pluralidade da sociedade brasileira.
Com Mame’to dia nkise Muiande (Mãe Efigênia), pudemos conhecer um pouco das tradições do candomblé de Angola e refletir sobre o racismo institucional sofrido pelas comunidades de terreiro. A aula de Mãe Nylsia, por sua vez, possibilitou o conhecimento da cosmogonia nagô e os modos de perceber-sentir o mundo pautados nos versos sagrados de Ifá. Pai Ricardo, sacerdote da Umbanda, apresentou os fundamentos dessa religião com base na vivência de matriz-africana utilizando os alimentos. Acompanhamos ainda a experiência do xirê tocado na Estação Ecológica da UFMG.
Por seu turno, a disciplina Edição de textos sonoros, ministrada pelo professor e doutorando Ridalvo Félix, mapeou a episteme afro-brasileira, explorando as possibilidades das performances. O docente organizou uma série de rodas de conversas: na primeira, o capitão Alisson, do Congado da Irmandade de Nossa Senhora em Ibirité, levou as caixas de sua irmandade e as crianças de sua comunidade, que tocaram os ritmos do povo de reinado. O Babalorixá Hugo apresentou-nos os segredos do candomblé Ketu e revelou alguns dos ofó das folhas sagradas. O Tate’to Jalabó (Pai Geraldo), da Casa de Cultura Lodé Apará, em Santa Luzia, abordou as particularidades da nação Omoloko, manifestação religiosa de base afro-indígena. Por fim, a atriz Eneida Baraúna fez uma performance sobre as lendas dos orixás, transcriadas com base em sua experiência religiosa e na militância no movimento negro. Cabe ressaltar que foram produzidos documentários sobre esses encontros que serão organizados e lançados pela Universidade.
Há nessas disciplinas, portanto, o devido reconhecimento dos nossos saberes, que não atravessaram os muros da academia e outrora foram excluídos da história da razão (vide os hegelianos). É importante reconhecer que ainda estamos distantes de alguma justiça (Ere mi!; Kaô Kabiesilê!) no que tange à acessibilidade-permanência de nossas tradições e povos na universidade. Contudo, um primeiro passo foi dado para reverter as diferenças estabelecidas desde antanho, pois, como ouvimos de nossos N’ganga, “nego velho caminha devagar, mas chega!”.
*Licenciado em Letras/Português, bacharelando em Edição pela Faculdade de Letras, pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade (Neia) da UFMG e candomblecista
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