Janela de suscetibilidade
Pesquisa constata vulnerabilidade funcional do fígado durante processo de regeneração
Embora aparentemente recuperado, o fígado permanece disfuncional após processos inflamatórios, o que pode tornar o indivíduo vulnerável a infecções por cerca de duas semanas. Isso parece decorrer da imaturidade das novas células, que ainda não “aprenderam” a exercer sua função. A descoberta é um dos destaques de artigo produzido no Instituto de Ciências Biológicas (ICB) e publicado no fim de agosto no periódico Gastroenterology.
O trabalho, que tem como primeira autora a doutoranda Bruna Araújo David e como líder seu orientador, Gustavo Menezes, também caracterizou uma nova população de células dendríticas, cuja existência no fígado não era bem estabelecida. Realizado em colaboração com pesquisadores das universidades de Harvard (EUA) e de Calgary (Canadá), o estudo sugere a necessidade de tratamentos com anti-inflamatórios para acelerar a regeneração funcional do órgão.
Segundo Gustavo Menezes, a janela de suscetibilidade que o fígado enfrenta quando está se regenerando caracteriza-se não por número menor de células, mas pela qualidade delas. “Se um profissional comparasse uma lâmina de biópsia de fígado no período de disfunção com a de um paciente saudável, elas seriam indistinguíveis. Porém, o primeiro ainda está doente, e o segundo não”, assegura o pesquisador, que é professor do Departamento de Morfologia do ICB. “A capacidade de funcionamento em ambas é completamente diferente. Nem acreditamos a princípio, repetimos os testes várias vezes”, enfatiza.
O principal achado da pesquisa foi a revelação de que, nesse período, as células hepáticas ganham aspecto de normalidade apenas visualmente, enquanto o órgão permanece disfuncional, por exemplo, para responder a processos inflamatórios e especialmente para exercer a função de eliminar bactérias que caem na corrente sanguínea. O trabalho usou combinação de técnicas para mostrar a localização e a função de todas as populações celulares do fígado. “Procuramos entender o órgão saudável e observar como ele muda e como volta ao normal”, explica o orientador.
Maturidade
Quase todos os órgãos do corpo têm células chamadas macrófagos residentes, que moram no tecido e ajudam em seu funcionamento normal, como defesa contra infecções e reparos em casos de lesão. Doenças infecciosas, abuso de medicamentos, procedimentos do tipo irradiação e quimioterapia matam todos os macrófagos residentes no fígado – ou parte deles –, forçando o organismo a repor essas células.
Em seu trabalho, Bruna David acompanhou programa do próprio fígado, que transporta células da medula óssea, pela circulação sanguínea, para substituir as antigas, exatamente no mesmo número e na mesma forma anterior, processo que se completa em apenas duas semanas. Observou, contudo, que esse período não é suficiente para que elas aprendam a funcionar como macrófagos hepáticos. Por estarem imaturas, precisam de aproximadamente 30 dias para “entender o ambiente” e tornar o fígado funcional.
“Esse processo é comum em vários órgãos. Pulmão e cérebro, por exemplo, muitas vezes recebem os mesmos precursores que poderiam, inclusive, tornar-se macrófagos do fígado”, explica Gustavo Menezes, destacando que cada órgão instrui a célula precursora a falar a sua língua. “São os mediadores inflamatórios do fígado que ensinam células da medula óssea a se tornarem células hepáticas”, completa.
Depois que o corpo vence o processo inflamatório que matou abruptamente grande quantidade de células, segue-se delicado período em que ocorre o desbalanço nos mediadores inflamatórios do fígado, tornando-o temporariamente incapaz de ensinar as novas células a exercer suas funções. O trabalho desenvolvido sob a orientação de Gustavo Menezes mostrou que, quando o processo inflamatório é controlado, as novas células assumem sua função muito mais rapidamente – em pelo menos metade do tempo.
“Saber que existe essa janela de suscetibilidade é importante, por exemplo, em tratamentos de câncer”
Segundo o pesquisador, embora antibióticos utilizados em tratamentos possam eliminar microrganismos que estejam lesando o fígado, nem sempre se dá a devida importância ao combate do processo inflamatório causado pela infecção. “Há muitos casos em que o paciente reage tão mal à infecção que entra numa síndrome inflamatória e morre. Controlar a inflamação é, portanto, necessário para que o órgão retome suas funções mais rapidamente”, reforça Menezes.
Ele lembra que há duas causas principais de mortalidade por doença hepática: falência por doença do próprio órgão e perda da capacidade do fígado de remover bactérias em circulação, o que predispõe o paciente a infecção sistêmica. E comenta que é fundamental entender como o fígado educa as células, para acelerar esse processo em pacientes em regeneração hepática. “Saber que existe essa janela de suscetibilidade é importante, por exemplo, em tratamentos de câncer”, afirma.
Lacunas preenchidas
De acordo com o orientador, o trabalho de Bruna David preenche várias lacunas que foram sugeridas por outras pesquisas. “Achados desse estudo vão ajudar muita gente a entender até processos com os quais nossa equipe não trabalha”, reforça. O trabalho combinou pelo menos nove linhagens diferentes de animais e utilizou técnicas que não existem no Brasil. Alguns testes foram realizados em colaboração com pesquisadores de Harvard e de Calgary.
Para exemplificar a dimensão e o nível de rigor da pesquisa, Gustavo Menezes explica que normalmente são usados até 12 marcadores de superfície para fazer caracterização de uma célula. No trabalho, foram empregados cerca de 30 marcadores simultaneamente, ampliando a chance de localizar populações celulares muito especializadas. “Além disso, enquanto estudos de expressão gênica trabalham normalmente com um número de dezenas a algumas centenas de genes, nesta pesquisa usamos mais de 570.”
Para mostrar pela primeira vez a população de células dendríticas no fígado, a pesquisa usou combinação de sequenciamento gênico, cintometria de fluxo e imagem in vivo. Bruna David explica que os marcadores geralmente usados para identificar macrófagos e células dendríticas mudam de um órgão para outro. “Havia o entendimento de que essas células eram uma subpopulação de macrófagos, mas mostramos que não. Trata-se de células primas, muito próximas, sendo bastante difícil discriminá-las nos tecidos, e conseguimos fazer isso claramente”, diz a doutoranda. “Agora que sabemos que célula é essa, vamos procurar entender o quanto ela se relaciona com as outras populações celulares do fígado. Acreditamos que ela pode ter papel importante em infecções virais, por exemplo”, sugere o orientador.
Depois de identificar, em microscópio, a célula no animal vivo, a equipe estudou diversos genes do sistema imunológico. “Comparamos esses genes com os de células já bem estabelecidas e mostramos que elas são muito próximas geneticamente de outras células dendríticas do corpo e diferentes de outras células imunológicas”, explica Gustavo Menezes.
O pesquisador pondera que a colaboração com universidades estrangeiras para a realização dos testes não diminui a autonomia da UFMG e mostra que a pesquisa tem de ser feita globalmente. Segundo ele, é improvável que um único instituto detenha todos os métodos que a velocidade da ciência pede na atualidade. “Vários grandes trabalhos são feitos em colaboração, sem fronteiras. São multicêntricos e envolvem continentes diferentes; é disso que a ciência precisa: um esforço global pelo bem da humanidade”, argumenta Menezes.