Índios: memória, presença e voz
Havia os bólidos voadores que rasgavam velozmente os céus; havia as fábricas que despejavam bens para a avidez consumista; havia indivíduos perfeitamente “normais” à custa do soma, droga psiconormativa. E havia um Selvagem, John.
John, o elemento assíncrono em uma sociedade perfeitamente simétrica, o humano em sistema social alijado do humanismo, que recitava Shakespeare em uma era de proscrição do lirismo, o Selvagem que estava onde não deveria estar – afinal, “selvagens” tinham de ficar em reservas cercadas, longe da “civilização”, sem interferir no mundo da tecnocracia produtivista.
Eis o Admirável mundo novo, no longínquo ano de 632 “depois de Ford”, como descrito no futuro distópico de Aldous Huxley.
Se John era a antítese humanista daquela distopia futurista, os Pataxós, os Krenaks, os Yanomamis, os Guaranis-Kaiowás e outras etnias são os Johns no Brasil de 2017
E eis que cá estamos hoje, neste presente distópico, também a acossar e a delimitar índios “selvagens” em reservas espremidas, a uma distância segura da nossa propalada modernidade. E cá também estamos a olhá-los com um misto preconceituoso de exotismo, racismo e pretensa superioridade cultural a cada vez que tentam se imiscuir na universidade, na espaço urbano, no debate público. Se John era a antítese humanista daquela distopia futurista, os Pataxós, os Krenaks, os Yanomamis, os Guaranis-Kaiowás e outras etnias são os Johns no Brasil de 2017.
Talvez esse seja o grande simbolismo que reluz na graduação dos alunos Amaynara Silva Souza e Vazigton Guedes Oliveira, de etnia pataxó, que colaram grau como médicos na 141ª Turma da Faculdade de Medicina da UFMG, em dezembro último. Porém, seria reducionista entender a presença indígena na Universidade – hoje amplificada pelo Programa de Vagas Suplementares da UFMG – como mero simbolismo de um gesto de reparação histórica a povos que, há mais de 500 anos, enfrentam um ativo processo de massacre étnico, cultural e ecológico. Vislumbrar os alunos indígenas apenas como símbolos a adornar uma sociedade que quer parecer multicultural e tolerante é furtar-lhes o direito à cidadania plena, é esvaziar a potência de sua presença na Universidade.
É necessário ouvir, compreender e assimilar a voz dos índios, de suas lideranças e de intelectuais como Aílton Krenak e Davi Kopenawa. É deles que vem o contraponto à distopia. São suas vozes dissonantes que nos alertam do perigo que representa a marcha avassaladora do desenvolvimentismo sobre populações minoritárias e sobre o meio ambiente, com sua fúria a desviar e a represar rios para construir megausinas hidrelétricas na Amazônia, a destruir montanhas inteiras para extrair minérios – tudo para saciar nossa irrefreável sanha por “progresso”. Ouçamos o xamã yanomani Kopenawa, em seu impressionante livro A queda do céu, coescrito com o antropólogo Bruce Albert:
As coisas que os brancos extraem das profundezas da terra com tanta avidez, os minérios e o petróleo, não são alimentos. São coisas maléficas e perigosas, impregnadas de tosses e febres [...]. Ele [Omama], porém, decidiu, no começo, escondê-las sob o chão da floresta para que não nos deixassem doentes. Quis que ninguém pudesse tirá-las da terra, para nos proteger. Por isso, devem ser mantidas onde ele as deixou enterradas para sempre. A floresta é a carne e a pele de nossa terra [...] O metal que Omama ocultou nela é seu esqueleto, que ela envolve com seu frescor úmido. [...] Eles [os brancos] já possuem mercadorias mais do que suficientes. Apesar disso, continuam cavando o solo sem trégua, como tatus-canastra. Não acham que, fazendo isso, serão tão contaminados quanto nós somos. Estão enganados.
Na perspectiva yanomami, os metais das profundezas das montanhas foram implantados por Omama, o demiurgo, para serem os fundamentos que sustentam a terra. São funestas as consequências de solapar esse arcabouço:
Assim, esse ferro está enfiado na terra como as raízes das árvores. Ele a mantém firme como espinhas fazem com a carne dos peixes e esqueletos, com a de nosso corpo. Torna-a estável e sólida, como nosso pescoço faz nossa cabeça ficar reta. Sem essas raízes de metal, ela começaria a balançar e acabaria desabando sob nossos pés. Isso não acontece em nossa floresta, pois ela está no centro da terra, onde esse metal de Omama está soterrado. No entanto, entre os brancos, em seus confins, onde o solo é mais friável, acontece às vezes de ela tremer e se romper, destruindo cidades.
Devemos deixar de ver essa mensagem como risível folclore primitivo. Uma visão “selvagem” e “incivilizada”? As tragédias criminosas em Belo Monte, em Mariana e no Vale do Rio Doce, com cidades, comunidades e ecossistemas inteiramente arrasados, como profetizou o xamã, evidenciam bem que incivilizada e ingênua é justamente a visão de que sobreviveremos incólumes ao assalto ganancioso e frenético ao meio ambiente, que perpetramos com ímpeto ecocida. O desequilíbrio gerado pela exploração ambiental irresponsável ameaça o clima e as reservas hídricas e impacta comunidades tradicionais e a saúde pública. Urge ouvir Kopenawa que, profeticamente, sentencia: “Se os brancos de hoje conseguirem arrancá-lo [o metal] com suas bombas e grandes máquinas, do mesmo modo que abriram a estrada em nossa floresta, a terra se rasgará, e todos os seus habitantes cairão no mundo de baixo”.
“O pensamento dos brancos está cheio de esquecimento”
A tarefa que se nos impõe é de resgatar a memória da cosmovisão indígena, historicamente silenciada e menosprezada. É necessária a transmutação de todo um aparato de pensar. “O pensamento dos brancos está cheio de esquecimento”, sentencia Kopenawa, invertendo brilhantemente a lógica neurocientífica que compreende a amnésia como um fenômeno negativo (falta de lembrança) e não como um processo positivo (excesso de olvido).
Essa ressignificação da memória e da voz indígena potencializaria, pois, uma nova maneira de refletir a ação humana no planeta. Lembrando Faulkner – “a memória acredita antes de o conhecimento lembrar”–, precisamos resgatar essa memória e explicitá-la na recordação de um novo conhecimento, para construção de uma nova praxis ancorada em novo ethos. E, para tanto, precisamos ouvir e escutar o que os índios, os “Johns” deste Admirável mundo novo, têm a nos dizer – na universidade e fora dela.
(Leonardo Cruz de Souza - Médico neurologista, doutor em Neurociências pela Université Paris 6, professor adjunto do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFM)