Encenações Quixotescas
Editora UFMG lança coletânea de ensaios sobre aspectos objetais de Dom Quixote, obra que ficou conhecida como “um livro sobre os livros”
Por várias razões, críticos literários são recorrentes na afirmação de que o livro El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, é uma espécie de fundador do gênero romance. Um desses motivos pode estar no fato de a obra conter a representação metalinguística do próprio universo do livro. De olho nesse jogo especular, a Editora UFMG acaba de lançar Dom Quixote: encenações tipográficas, que discute o livro que discute o livro, numa espécie de mise-en-abyme teórico-literário.
Organizado por Daisy Leite Turrer, professora da Escola de Belas Artes, e Eliana Scotti Muzzi, professora aposentada da Faculdade de Letras, o volume contém cinco artigos, cujos autores tomam como referência a obra-prima de Cervantes para pôr em cena diferentes debates relativos ao universo do livro como objeto.
Os dois primeiros ensaios partem de uma análise comparativa das folhas de rosto das duas edições da obra que constam na biblioteca do Santuário do Caraça, localizado no município de Santa Bárbara, em Minas Gerais. Uma edição é de 1879; a outra, do longínquo ano de 1697.
No primeiro texto, Daisy Turrer “coloca em foco a visita de Dom Quixote a uma casa de impressão em Barcelona, cenário do jogo instituído com a letra por meio de deslocamentos de diferentes ordens, que introduzem no livro o ato de sua publicação”, como explicam as organizadoras na apresentação do volume. No segundo, Eliana Muzzi analisa dois elementos paratextuais do livro: “o prólogo, que se define como um paratexto contra o paratexto, e as folhas de rosto dessas edições, separadas por dois séculos”.
Três outros artigos completam a coletânea. Em Dom Quixote e o bom governo, Alexandre José Gonçalves Costa, doutor em história social e professor do Instituto Federal da Paraíba (IFPB), se propõe a pensar “a disparidade entre o discurso discreto e a ação disparatada do personagem” como projeção de certa transição histórica entre “um mundo calcado sobre os valores heroicos da cavalaria” e o contexto pragmático e contratual do mundo burguês, que estava emergindo.
No quarto texto, Ana Utsch, também professora da Escola de Belas Artes, aborda a proliferação de edições do livro no contexto do romantismo francês do século 19, além das especificidades do uso de imagens nas publicações do período, que sugerem certo trânsito do cômico e burlesco ao simbólico e romântico. Utsch se dedica não apenas às ilustrações contidas nas edições, mas também às suas encadernações e ao processo editorial como um todo.
No último artigo, Janes Mendes Pinto, graduada em Letras e em Belas-artes pela UFMG, trata de diferentes traduções do livro e analisa a abordagem feita do tema “tradução” no interior da própria obra. “A figura do tradutor é onipresente no livro, aí se inscrevendo a partir mesmo da dispersão de sua origem, imiscuindo-se entre os pseudonarradores e frequentemente assumindo a identidade de um árabe, personagem tão pouco confiável, no texto de Cervantes, quanto a própria prática da tradução”, escrevem as organizadoras.