Artes cruzados
Tese sobre escritores e artistas visuais latino-americanos do início do século passado mostra poéticas híbridas que usam o jogo como estratégia
Quatro criadores cuja produção se concentrou nas primeiras décadas do século 20 representam uma vertente poderosa das vanguardas latino-americanas: eles fizeram opções transgressoras que exploram potencialidades semânticas e estéticas do jogo poético entre texto e imagem. O brasileiro Oswald de Andrade, o uruguaio Joaquín Torres-García e os argentinos Oliverio Girondo e Alejandro Xul Solar foram estudados por Yara dos Santos Augusto Silva para tese que foi eleita a melhor do ano de 2016 pelo Programa de Pós-graduação em Estudos Literários.
“Oswald e Girondo são poetas que se interessam pelo visual e criam o que chamo de ‘plasticidades poéticas’; os artistas visuais Xul Solar e Torres-García fazem uma ‘escritura pictural’, utilizando linguagens de signos, em suas obras”, explica Yara Augusto. “Eles instauram novos sistemas estéticos,
permeados pelo jogo entre escritural e pictórico, para renovar a arte latino-americana e dialogar com a produção europeia da época, sem repeti-la.”
Do modernista Oswald de Andrade, Yara escolheu o livro O perfeito cozinheiro das almas deste mundo, de 1918. A obra foi concebida como um jogo coletivo de criação, que envolveu amigos intelectuais e uma jovem amante do escritor. Um caderno de contabilidade é transformado em álbum de convivência que mescla signos visuais e verbais, muitas vezes por meio de colagens. “É um livro fragmentário e experimental, com trocas de autoria e uso de pseudônimos, provocações e respostas de ordens distintas, repleto de ironia, sátira e trocadilhos”, descreve a autora da tese.
Oliverio Girondo tinha afinidades com Oswald – a começar pelo temperamento e pela vocação para liderar movimentos artísticos. O brasileiro assinou o Manifesto Antropofágico, e o argentino lançou o Manifesto Martín Fierro, que deu voz à vanguarda em seu país. Em 20 poemas para ler no bonde (1922), seu livro de estreia, ele é autor também das ilustrações e faz uma atualização da ideia de caderno de viagens.
A obra é considerada o primeiro livro de autor da Argentina – ele mesmo a editou de modo independente. “Girondo explora o diálogo entre poemas e ilustrações, a função desempenhada pelo suporte e subverte sentidos, vislumbrando a matéria poética na realidade cotidiana”, diz Yara Augusto.
Iconografia própria
O jogo – pictórico e escritural – é o conceito que norteia o desenvolvimento da obra de Joaquín Torres-García. As marcas mais fortes de criação do artista uruguaio são os brinquedos de madeira pintada, com peças montáveis e intercambiáveis, e os painéis seccionados em que ele combina símbolos arquetípicos, signos arcaicos e contemporâneos de diversas culturas. “Com os brinquedos manipuláveis, Torres-García reordena sentidos e, com os painéis, cria uma iconografia própria”, define Yara.
O quarto artista escolhido para o estudo é um velho conhecido de Yara Augusto, que ela estudou no Poslit durante o mestrado. Alejandro Xul Solar, outro jogador das artes visuais, criou um xadrez pansemiótico destinado a propor novas línguas. O jogo, em que ninguém perde, contém sons para música, cores para pintura, letras para palavras, números para notações e um sistema de leitura da sorte.
“Com o lúdico manejo de significantes, que faz pictórico e escritural convergirem, os quatro criadores produzem obras que constituem manifestações de poéticas visuais. São trabalhos sincréticos, atuais, que só recentemente foram entendidos e geram fascínio”, comenta Yara Augusto. “Eles criaram na premência de abandonar estruturas retóricas e representacionais que consideravam superadas, buscando mecanismos expressivos mais dinâmicos e arrojados, em processos singulares que levam à elaboração de significados complexos no âmbito de uma correlação entre as artes”, conclui a pesquisadora.
Tese: Plasticidades poéticas, escrituras picturais: jogos do texto e da imagem na arte de poetas e pintores das vanguardas latino-americanas
Autora: Yara dos Santos Augusto Silva
Orientadora: Vera Casa Nova
Defesa em maio de 2016
Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários