Boletim
Multiplicação dos peixes
Tilápia transgênica
Pesquisas de grupo do ICB com peixes geneticamente modificados geram 10 pedidos de patentes e pode contribuir para estudos em áreas como crescime
A utilização da tilápia-do-nilo (Oreochromis niloticus) como biofábrica para produção do hormônio de crescimento humano está entre as principais linhas de investigação de grupo de pesquisadores do Instituto de Ciências Biológicas (ICB). O trabalho, transdisciplinar, é parte de pesquisa mais ampla que recentemente gerou, a partir de uma única tese de doutorado, depósito de dez pedidos de patentes relacionadas à elaboração de estratégias inovadoras para modificação de células-tronco espermatogoniais e ao uso de nanomateriais para entrega de genes nesse tipo de célula.
Quatro das patentes depositadas abordam metodologias capazes de conduzir à geração de tilápia fluorescente, que pode ser usada como modelo de estudo, como biofábrica para produção de proteínas em larga escala ou como peixe ornamental. “Por suas características específicas, principalmente relacionadas à reprodução, o peixe oferece muita plasticidade para o trabalho com biologia celular e molecular. Mas enquanto há laboratórios no mundo inteiro que produzem camundongos transgênicos, ainda não há cultivo eficiente de modelo padronizado de peixe de experimentação”, informa a pesquisadora Samyra Lacerda, integrante do grupo coordenado pelo professor Rodrigo Resende, do Departamento de Bioquímica e Imunologia, em parceria com Luiz Renato de França, professor do Departamento de Morfologia e atual diretor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
A tese de Fernanda Tonelli que gerou os pedidos de patentes valeu-se de achados de estudos anteriores de Samyra, realizados sob orientação de Luiz Renato de França, de elucidação dos processos de isolamento e de cultivo da espermatogônia-tronco, célula-tronco presente nos testículos e base para o processo contínuo de produção de espermatozoides em animais e em humanos.
Testes
A busca pelo melhor meio de inserir um gene modificado na espermatogônia-tronco – processo conhecido como transfecção – levou a testes de uso de nanotubos de paredes múltiplas carboxilados, que resultaram em menor taxa de morte celular e maior índice de geração do transcrito da proteína fluorescente gerada após entrega do DNA plasmidial ou plasmídeo, que a codifica, com auxílio das nanoestruturas. Molécula de DNA dupla fita, em forma circular, o plasmídeo é largamente utilizado pela biologia molecular para a entrega de genes de interesse a células-alvo.
“Surpreendidos com o potencial desse nanoveículo, ampliamos o número de materiais em teste”, informa Rodrigo Resende. Ensaios também foram feitos com nano-óxido de grafeno, nanodiamantes, nanorods de ouro, todos sintetizados no Laboratório de Sinalização Celular e Nanobiotecnologia, em parceria com o professor Luiz Ladeira, do Departamento de Física, e com nanocompósitos de fosfato, oriundos de parceria com o professor José Dias, do Departamento de Morfologia. “Todos geraram depósito de pedido de patente relacionado a seu processo de síntese e funcionalização, além de uso para a entrega de ácidos nucleicos”, ressalta Resende, que coordena o Laboratório de Sinalização Celular e Nanobiotecnologia do ICB, mantido com recursos do Instituto Nanocell e do CNPq.
Esses processos melhoraram a eficiência da transfecção, atualmente realizada majoritariamente com o reagente lipofectamina, que é extremamente citotóxico, ou seja, mata facilmente as células. A equipe também fez ensaios com outras células de difícil transfecção – cardiomiócitos, células neuronais e tumorais do cérebro – e concluiu que também nelas os nanomateriais são eficientes. “Agora vamos produzir kits de transfecção com nanomateriais, que serão comercializados para pesquisadores e institutos de pesquisa”, anuncia Resende.
Outra linha de testes foi realizada com partículas lentivirais (vírus) como veículos de entrega. Os dois tipos de transfecção são eficientes, mas se ajustam a diferentes finalidades: o primeiro oferece expressão do transgene apenas de maneira transiente, isto é, temporária, pois, à medida que se dividem, as células que contêm a expressão podem morrer. Já as alterações realizadas por intermédio dos lentivírus tornam-se permanentes, pois passam a integrar o genoma.
Caminho aberto
A obtenção da tilápia fluorescente foi apenas a porta de entrada para a padronização de técnicas com desdobramentos em múltiplas áreas. “O primeiro passo era descobrir se a espermatogônia-tronco aceitaria um DNA a ela entregue e como essa entrega deveria ser feita de maneira eficiente. Já que ela aceitou bem a construção e produziu a proteína fluorescente, o caminho está aberto para outros genes”, resume Fernanda Tonelli.
Nesse caso, o uso da proteína fluorescente funcionou como “repórter”, ao mostrar aos pesquisadores que a célula fora efetivamente modificada. O peixe obtido no processo pode ser reproduzido como animal ornamental ou para estudos – com genes de crescimento da espécie, resistentes a antibióticos e a diferentes temperaturas, por exemplo. As variações geradas do peixe transgênico são fontes de outras quatro patentes.
Os atuais trabalhos de Fernanda Tonelli concentram-se no uso de animais como biorreatores para a produção eficiente de hormônio de crescimento humano (hGH) e de outras proteínas de interesse para a saúde humana. “Em 2014, o Sistema Único de Saúde (SUS) gastou quase R$125 milhões com a importação de hGH”, informa a pesquisadora, para demonstrar a importância dessa linha de investigação.
De acordo com Rodrigo Resende, a tecnologia desenvolvida por sua equipe “abre caminho para uma simples substituição de sequência de hGH no plasmídeo por outra de proteína de interesse econômico humano”. A intenção é gerar ampla gama de proteínas recombinantes passíveis de utilização em soros, vacinas e fármacos. O professor enfatiza que a bioquímica pode se beneficiar dessa proposta, “que vai ao encontro da Estratégia Nacional de Biotecnologia, na área prioritária agropecuária/aquicultura, ao utilizar plantas e animais como biorreatores para produção de biomoléculas”.
Espermatogônia versus célula ovo
A mudança genética por meio da espermatogônia-tronco é a vantagem da metodologia desenvolvida na UFMG em comparação com a canadense utilizada para gerar o salmão transgênico aprovado pelo Food and Drug Administration (FDA), que usa a técnica de microinjeção. De acordo com Fernanda Tonelli, na técnica desenvolvida no Canadá, o gene de interesse é injetado durante a fertilização in vitro ou logo após, enquanto se tem uma única célula oriunda da fusão dos gametas. Como a integração genômica não é tão rápida quanto a divisão da célula-ovo na geração de um organismo, a sequência aparece em apenas algumas das novas células, gerando um “mosaico”.
Como resultado, o peixe gerado vai expressar a proteína fluorescente apenas em alguns lugares de seu organismo. “Aqui, modificamos a espermatogônia, que é transplantada de volta para o receptor, e conseguimos obter o gameta geneticamente modificado para fertilização de um ovócito”, comenta Fernanda Tonelli. Desse modo, é possível obter um transgênico total heterozigoto, sem a necessidade de passagem pela geração “mosaico”, consequência da microinjeção, o que poupa tempo no estudo e aumenta a eficiência. “Os trabalhos com microinjeção não têm essa eficácia: geram três mil animais para obter algumas poucas unidades de transgênicos”, compara.
Os achados da tese de Fernanda Tonelli geraram dez capítulos de livros e dez artigos científicos, três dos quais publicados nos periódicos RSC Advances e Nanoscale, da Royal Society of Chemistry (Reino Unido). Um deles foi considerado destaque do mês de dezembro de 2015 pela Sociedade Brasileira de Pesquisa em Materiais; outro, intitulado Gene delivery to Niletilapiacells for transgenesis and the role of PI3K-c2α in angiogenesis, saiu em março último no periódico Scientifics Reports, do grupo Nature. Ainda há mais dois artigos em análise nos periódicos Nature Protocols e Biotechnology Advances. “É uma das teses mais produtivas da UFMG”, avalia Rodrigo Resende.
A tecnologia e os produtos patenteados conduziram à criação da Startup Nanocell, recentemente selecionada, com esse projeto, entre os 21 melhores de um total 351 empreendedores inscritos, oriundos de cem instituições de 16 estados e três países. A equipe está participando do Biostartup Lab em rodada patrocinada pela Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma).
Transplantes e conservação
Desenvolvida por Samyra Lacerda, a técnica de transplante de espermatogônia-tronco é outra linha de pesquisa que compõe as áreas de interesse do grupo coordenado por Rodrigo Resende e Luiz França. O método consiste em transplantar a espermatogônia-tronco do testículo de um animal para o de outro, que passa a produzir espermatozoides do doador. Entre as aplicações possíveis, está o autotransplante, para homens com câncer, que poderiam receber de volta o próprio material biológico colhido antes do tratamento quimioterápico, recuperando, assim, a fertilidade.
A técnica também pode beneficiar iniciativas de conservação de espécies ameaçadas de extinção. “Temos um trabalho com o pirarucu, peixe extremamente importante da Bacia Amazônica, que já desapareceu em alguns estados da Região Norte”, informa a pesquisadora. Maior peixe de água doce no país, o pirarucu demora cinco anos para atingir a maturidade sexual e não se reproduz em cativeiro.
“Transplantamos espermatogônia-tronco do pirarucu para o testículo da tilápia, peixe pequeno, barato, de fácil manutenção e do qual já se conhece todo o processo reprodutivo. Desse modo, a tilápia vai produzir o espermatozoide de pirarucu”, relata Samyra Lacerda. Em peixes, a espermatogônia-tronco tem uma particularidade: se transplantada para uma fêmea, ela se diferencia e gera ovócitos. “Assim, se transplantamos para indivíduos de ambos os sexos, conseguimos produzir espermatozoides e ovócitos a partir daquela célula-tronco. Em mamíferos, ainda não temos relato da plasticidade deste tipo celular”, completa.