Educação e rebeldia
O aprender e a forma como aprendemos dependem das emoções, ou seja, a percepção do mundo ocorre, em primeiro lugar, por meio de estímulos recebidos pelos sentidos, e por isso não é possível pensar em educação e aprendizagem – e consequentemente em disciplina – sem levar em consideração o fator emocional. Ao enfocar a emoção como energia vital que liga o mundo externo ao mundo interno de cada um de nós, nota-se, por exemplo, que a abordagem da questão da disciplina, pela dimensão da moralidade, tende a se concentrar na penalização da indisciplina. O estudante que segue as normas de comportamento seria necessariamente um amante das virtudes ou age assim por temer o castigo e achar mais “lucrativo” não enfrentar diretores, professores e bedéis?
Certos atos de indisciplina podem se dar por questões genuinamente morais, como ocorre, por exemplo, quando um aluno é humilhado, injustiçado e, por isso, revolta-se contra as autoridades que o reprimem. Antes de mais nada, é preciso analisar os fundamentos das normas impostas e dos comportamentos esperados, pois os vícios autoritários costumam estar vestidos na pele de valores democráticos. Não podemos esquecer o papel da escola como espaço libertário de emancipação do indivíduo, no tocante à promoção de suas capacidades racionais e sensíveis, voltadas para a viabilização da dignidade humana em termos socioambientais respeitáveis. Para tanto, as instituições de ensino devem ser agentes culturais preocupados com a qualidade de vida no mundo, o que demanda o desenvolvimento do conhecimento científico compatível com a liberdade do saber e a responsabilidade do poder.
O inconformismo educacional contribui fundamentalmente para o desenvolvimento da consciência cidadã, via fortalecimento dos vínculos sociais que, de fato, prezam pela virtude ética entre nós: sobreviver, viver e conviver, com prudência, coragem e generosidade. Sabemos que o conformismo coletivo, diante dos frequentes abusos de autoridade e dos esquemas de corrupção recorrentes, prejudica o avançar da igualdade e da honestidade como virtudes fundamentais que precisam ser cultivadas permanentemente. Para suspender essa apatia social, a rebeldia como forma de manifestação de uma indignação esclarecida deve ser incentivada em nossas escolas para que o ativismo se fortaleça como movimento democrático de vanguarda política, qualificando o nosso espírito público para o exercício da cidadania plena e exemplar.
Quando se fala dos desafios da educação, muitos se referem à falta de motivação, às distorções entre o mundo da educação e o mundo do trabalho e à crise de valores. Nesse aspecto, ainda se espera que a escola resgate alguns valores que estão se desvirtuando cada vez mais. Sem dúvida, parece-me que, no que se refere à educação, uma questão preocupante, da qual deveríamos nos ocupar na atualidade, é a destruição do público em oposição ao privado. Vivemos o tempo em que o público – dimensão associada ao interesse de todos e não ao interesse de algumas partes – está sendo progressivamente destruído. A rebeldia vem sendo desencorajada em nome de um projeto conservador e fascista, travestido de empreendedorismo e meritocracia. O agigantamento da economia, em sua faceta neoliberal, apequenou a política, cujo interesse passou a ser o de favorecer o atendimento dos interesses partidários e corporativos. A educação e o social estão sendo apropriados cada vez mais pelas corporações e cada vez menos pelo Estado. Logo, a noção do “interesse público” entrou em declínio preocupante.
Sobre o tema em debate, a filósofa e professora da USP Marilena Chauí apresenta análise irretocável, em artigo intitulado A universidade operacional (Folha de S.Paulo, 9/5/1999): “A Reforma do Estado brasileiro pretende modernizar e racionalizar as atividades estatais, redefinidas e distribuídas em setores, um dos quais é designado Setor dos Serviços não exclusivos do Estado, isto é, aqueles que podem ser realizados por instituições não estatais, na qualidade de prestadoras de serviços. O Estado pode prover tais serviços, mas não os executa diretamente nem executa uma política reguladora dessa prestação. Nesses serviços estão incluídas a educação, a saúde, a cultura e as utilidades públicas, entendidas como ‘organizações sociais’ prestadoras de serviços que celebram ‘contratos de gestão’ com o Estado. A Reforma tem um pressuposto ideológico básico: o mercado é portador de racionalidade sociopolítica e agente principal do bem-estar da República. Esse pressuposto leva a colocar direitos sociais (como a saúde, a educação e a cultura) no setor de serviços definidos pelo mercado. Dessa maneira, a Reforma encolhe o espaço público democrático dos direitos e amplia o espaço privado não só ali onde isso seria previsível – nas atividades ligadas à produção econômica –, mas também onde não é admissível – no campo dos direitos sociais conquistados”.
Nesse sentido, lembro-me da voz marcante de Renato Russo, na canção Geração Coca-Cola (1985), acompanhada da fabulosa Legião Urbana, abrindo as nossas mentes e os nossos corações para a importância política da escola no combate aos perigos do imperialismo capitalista e do seu investimento ditatorial, massificado, consumista e alienador: “Quando nascemos fomos programados / A receber o que vocês / Nos empurraram com os enlatados dos U.S.A, de 9 às 6 / Desde pequenos nós comemos lixo / Comercial e industrial / Mas agora chegou nossa vez / Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês / Somos os filhos da revolução / Somos burgueses sem religião / Somos o futuro da nação / Geração Coca-Cola / Depois de 20 anos na escola / Não é difícil aprender / Todas as manhãs do seu jogo sujo / Não é assim que tem que ser / Vamos fazer nosso dever de casa / E aí então vocês vão ver / Suas crianças derrubando reis / Fazer comédia no cinema com as suas leis”.
Sem rebeldia, a escola perde a sua principal serventia.