De onde veio essa música?
Em livro, Chico Amaral aborda a obra de Milton Nascimento, por meio de entrevista, depoimentos de parceiros e análise de partituras
A pergunta que dá título a este texto resume uma das motivações do compositor e instrumentista Chico Amaral para encarar o desafio de abordar em livro a obra de um dos ícones da música brasileira. A música de Milton Nascimento, lançado originalmente em 2012 e reeditado recentemente pela Editora UFMG, resulta também da forte impressão do autor de que a obra de Bituca é pouco compreendida, seja por críticos ou por acadêmicos.
O projeto, maturado durante vários anos, teve propósito de pôr em discussão o lugar de Milton Nascimento na MPB. “Acho que ele não é bem situado, bem contemplado no cânone, na academia e na imprensa”, justifica Chico Amaral. “Depois da bossa nova, foi Milton quem trouxe mais inovações. Criou um repertório vasto do ponto de vista técnico-musical, chamou a atenção de músicos de todos os cantos.”
O autor não esquece a “grande capacidade” do intérprete, mas a composição de Milton Nascimento é privilegiada no livro. Segundo Chico Amaral, ele avançou na harmonia, na rítmica e na melodia. “A orquestração é original, diferente de Jobim e da bossa nova”, diz. “Ele opera uma fusão de estilos à sua maneira. Faz leitura de tudo, e tudo vira Milton. Até o pessoal do jazz tira o chapéu. Ele devolve para o mundo uma música pop mais criativa, com sabedoria, invenção e malícia.”
Sete encontros
Chico Amaral, que é letrista de sucessos do Skank e tem parcerias com Ed Motta, Lô Borges e o próprio Milton, abre o livro com uma abordagem da música popular do século 20, no Brasil e no mundo. Depois, na forma de perguntas e respostas, ele mostra os principais trechos de entrevista com o artista (cerca de 20 horas de conversa, em sete encontros), apresenta os discos que considera mais significativos, depoimentos de músicos parceiros – Wagner Tiso, “verdadeira alma gêmea musical”, Amilton Godoy, Nivaldo Ornelas e Tavinho Moura, entre outros –, analisa partituras e fecha com outro ensaio. “Aqui, desfaço um pouco a ideia, reducionista, da influência da música religiosa. Milton dialoga com a música.”
O autor destaca que a música está muito ligada à história pessoal de Milton Nascimento, que começou cedo a tocar profissionalmente. Foi programador da rádio que pertencia ao pai e ao tio, em Três Pontas (MG). “Ali, ele adquiriu uma cultura vasta sobre a música de fora, como a latino-americana, o que ajuda a explicar a criação de peças como San Vicente. Ele reconhece que a aproximação com a música latino-americana foi importante, num momento em que não havia muito interesse por ela no Brasil”, comenta Chico Amaral, que enfatiza também o caráter solidário da obra de Milton, que cantou tradições de minorias, como os indígenas.
Chico conta que Milton não gosta de citar influências individuais, mas reconhece que alguns nomes tiveram, sim, significado especial na sua formação de compositor: Villa-Lobos, Luiz Eça, Miles Davis e Tom Jobim, por exemplo. Para o autor, Milton “dá conta de muita coisa”, do folclórico (indígena, quilombola) e regional ao pop e ao rock (Fé cega, faca amolada, Paula e Bebeto), passando pelo samba sofisticado (Viola violar) e por maracatus e baiões, como Vera Cruz, uma das mais reconhecidas gravações de Milton no mundo, segundo Chico. Quando é preciso mencionar obras-primas, Chico Amaral lembra de Cais – “única até hoje, um ponto alto da produção musical brasileira” – e Nada será como antes, que revelou a maturidade do compositor.
No prefácio à obra de Chico Amaral, o crítico Tárik de Souza, concordando com o autor, confirma que se engana quem trata Bituca como um intuitivo ou um primitivista genial. Tárik diz que, “não por acaso, Chico denominou seu livro A música de Milton Nascimento. Trata-se de uma corrente autóctone de moto-próprio. Nascente e delta, com muitos afluentes. Algo único, uma aparição que influenciou fortemente o meio musical da época”.
A música de Milton Nascimento
De Chico Amaral
Editora UFMG
381 páginas / R$ 80