Despatologizar corpos e gênero
Pesquisador da Fafich recorre à ficção para narrar experiência em ambulatório do SUS dedicado às transexualidades
“Despatologizar é desconstruir, não desassistir”. A frase, de verbos longos, nomeia um dos capítulos do livro Ambulare, lançado recentemente pelo professor Marco Aurélio Máximo Prado, do Departamento de Psicologia da Fafich. E resume, de certa forma, o espírito da obra, em que o pesquisador transforma um diário de campo em peça de ficção para contar sua experiência no Ambulatório de Transexualidades da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Ele passou três meses em trabalho de acolhimento e acompanhamento de usuários e usuárias no cuidado à saúde.
Há 20 anos dedicado aos temas de gênero e sexualidade, ativista ao lado de travestis e transexuais, Marco Aurélio Prado estava interessado em ter uma experiência eminentemente prática no âmbito do SUS e conhecer a realidade de um grande hospital que usa protocolos, prontuários, diagnósticos, classificações e, ao mesmo tempo, vive no dia a dia a meta de “despatologizar os gêneros e os corpos” por meio das pequenas ações.
“Queria pensar a despatologização do gênero, dos corpos e das sexualidades por meio da materialidade da escuta, do olhar e da assistência”, diz o autor, que se transformou em um personagem, o Ambulare, que “se afeta pela experiência do outro e vai repensando todas as categorizações, a insuficiência dos diagnósticos e a importância da corresponsabilidade no cuidado à saúde”.
A opção pela ficção, segundo Prado, foi motivada pela possibilidade de criar com riqueza de detalhes e “descrever com deslocamento de sentidos”. “A ficção ajuda a evidenciar que as palavras e os sentidos podem possuir-se de formas diferentes, alterando nossa consciência e nosso olhar sobre o mundo, e que isso é um ato político”, afirma o professor. “Fabular é deslocar-se das categorias previstas e informadas pela história social das convenções de gênero.”
Marco Aurélio Prado criou os principais personagens com base nas experiências que vivenciou e acrescentou contradições e detalhes para mostrar que, quando se fala em gênero, sexualidade, corpo e desejo, “palavras e nomes são pouco, pois os processos de subjetivação são menos lineares e amarrados do que os diagnósticos”.
Autonomia e reflexão
Ambulare, do latim, que está na origem da palavra ambulatório e encerra a ideia de caminhar, ir e vir com autonomia, dá nome ao narrador, que de certa forma é o próprio ambulatório. “Ambulare recebe pessoas que desejam construir sua autonomia corpórea”, diz o autor. Segundo ele, pensar a despatologização em sua materialidade é pensar em autonomia e reflexão, e nenhum cuidado à saúde com essa finalidade pode abrir mão de construir corresponsabilidade. “Nenhum especialista detém algum saber que a experiência do corpo e das transexualidades não tenha produzido. Um cuidado despatologizador deve estar atento às singularidades das histórias pessoais e ao contexto em que se inserem essas singularidades.”
Marco Aurélio Máximo Prado salienta que, no Brasil, a questão é complexa, pois o acesso de travestis e transexuais à saúde está contaminado por discurso e prática patologizadores, marcados pela supervalorização do poder médico. Mas ele ressalva que isso vem mudando aos poucos, sobretudo com a força da recente decisão da Organização Mundial de Saúde de retirar a transexualidade do capítulo que trata dos transtornos psicopatológicos da sexualidade na Classificação Internacional de Doenças.
Ele também chama a atenção para uma “ofensiva reacionária antigênero que tem ocupado as universidades e as casas legislativas e que impede o acesso ao debate sobre gênero nas políticas públicas”. Prado defende que é preciso superar o conservadorismo para oferecer serviço de qualidade e que respeite a diversidade. “Esse é um princípio do SUS que deve valer para todos e todas. Portanto, travestis e transexuais têm o direito ao acesso e à construção do cuidado à saúde com dignidade e qualidade.”
Livro: Ambulare
Autor: Marco Aurélio Máximo Prado
Selo: PPGCOM – UFMG / 85 páginas
Download gratuito no site do PPGCOM. Versão em papel à venda na Quixote Livraria da Fafich, no campus Pampulha