Sem o vício na memória

Mitos de ponta-cabeça

Em livro, historiadora analisa tragédias gregas e romances do século 20 que se apropriam de histórias para questionar a ideia de heroísmo

Ulisses e Aquiles, os personagens criados por Homero na Grécia antiga, disputam desde o século 8 antes de Cristo o posto de grande herói da tradição ocidental. E eles têm sido, ao mesmo tempo, referências fundamentais, ao longo dos séculos, para releituras que questionam essa tradição.

No livro Heróis antigos e modernos: a falsificação para se pensar a História (Fino Traço), Lorena Lopes da Costa mostra como peças de Eurípedes e Sófocles, do século 5 antes de Cristo, e romances de quatro autores franceses do pós-Primeira Guerra Mundial, todos ex-combatentes, “reescrevem” as histórias de herói. “Essas obras, em contextos muito diferentes e cada uma a seu modo, apropriam-se de personagens do ciclo épico grego para reformular sentidos e valores, como o do heroísmo”, afirma a autora, que publica agora sua tese de doutorado, escolhida a melhor de 2016 pelo Programa de Pós-graduação em História da UFMG.

Jean Giraudoux reescreveu quatro passagens da Odisseia e publicou, nos anos 1920, Elpénor – não por acaso, ele dá a seu romance o nome de um soldado que, no relato de Homero, é o pior de todos os combatentes, nem sábio, nem corajoso. Segundo Lorena, que teve acesso a anotações de guerra de Giraudoux, o autor quis dizer que ele próprio foi mais parecido, no front europeu, com Elpenor e que “a guerra real é feita de Elpenores”.

“O romancista resgata a Odisseia para pôr em xeque a valentia e a bela morte. Ele subverte o sentido da obra de Homero, tornando-a uma espécie de código. Lembra que aprendemos a ler com a Odisseia, mas ressalta que, quando se vai à guerra, não se encontra nada daquilo”, explica Lorena Lopes, cuja pesquisa foi orientada por José Antonio Dabdab Trabulsi, na UFMG, e François Hartog, no Centre de Hautes Études em Sciences Sociales, na França.

Lorena: falsificação toma potente a tradição
Lorena: falsificação torna potente a tradição Foca Lisboa/UFMG


‘Divino mentiroso’
Os outros autores franceses analisados pela pesquisadora são Jean Giono, Louis Aragon e Valmy-Baysse. Em Naissance de l’Odyssée, Giono elege como personagem principal o próprio Ulisses, mas o transforma. O guerreiro corajoso, grande amante, que mata todos os pretendentes de sua Penélope na volta a Ítaca depois de 20 anos, não aparece dessa maneira no romance. “A única característica que o protagonista de Giono tem em comum com o de Homero é que ele mente como ninguém. E a maior mentira é que ele é um grande combatente”, conta Lorena Lopes.

Com os poetas trágicos, de acordo com a autora, foi muito parecido: eles revisitaram a história para pôr em dúvida o herói, por meio do teatro, na época da guerra do Peloponeso. Em Filoctetes, Sófocles cria um Ulisses canastrão, que só pensa na vitória. Ele abandona Filoctetes, companheiro de guerra, numa ilha e não tem qualquer pudor de voltar para buscá-lo, quando necessita de seus talentos de arqueiro. “Ao lermos essa já conhecida história, recriada por Sófocles, percebemos que seu público pode ter pensado: a vitória a qualquer custo tem valor? O que importa mais: a vitória ou a coletividade e a democracia?”, diz Lorena Lopes, que é professora de Teoria e Filosofia da História na Universidade Federal do Oeste do Pará.

Lorena destaca que a tradição se acomoda às necessidades de cada momento. “Ela se mantém viva por meio do que chamei, neste trabalho, de falsificação, e só por isso é potente”, diz. Em texto para a orelha do volume, o professor Jacyntho Lins Brandão, da UFMG, salienta que o trabalho não é feito de verdades prontas, mas do “esforço de compreender as injunções que levam a repor as velhas histórias no ‘ineditismo da necessidade’ dos novos tempos”.

Interessada desde a graduação nas possíveis relações entre história e ficção, Lorena Lopes ressalta a necessidade de compreender o “outro”: “Não se trata de entender os gregos ou os franceses, mas, particularmente, os procedimentos como as releituras ou falsificações da tradição, algo que nos ajuda a pensar como estamos lidando com essa herança”, enfatiza Lorena, que, em seus estudos de pós-doutorado, examina a atualização da tradição heroica grega no sertão de Guimarães Rosa.

Livro: Heróis antigos e modernos: a falsificação para se pensar a História
Autora: Lorena Lopes da Costa
Editora: Fino Traço
455 páginas / R$ 65

Itamar Rigueira Jr.